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CONJUR – Julgador capaz de caminhar pela internet será bem-vindo, por Paulo Ferrareze Filho

 

PRETOR PEREGRINO

Julgador capaz de caminhar pela internet será bem-vindo

21 de julho de 2014, 15:01h

Por Paulo Ferrareze Filho

Para Deleuze, a jurisprudência é uma pulsão do sistema jurídico que dá folego e mantém vivos, a cada nova decisão, o múltiplo e o contingente. Warat retrucou: Deleuze não leu Deleuze! Para Warat, acreditar que a jurisprudência possa materializar a diferença em cada decisão é o mesmo que acreditar nas desculpas que as adúlteras de Nelson Rodrigues contam para seus maridos fiéis quando chegam em casa tarde da noite, ofegantes e enrubescidas de tesão e culpa.

Quando Deleuze elogia a jurisprudência como locus de materialização de cada parte do múltiplo, esquece que o fundamento casuístico, realizado por quem está afundado em significados dados de antemão, não cumpre com sua virtuosa tentativa de compreensão da complexidade.

A jurisprudência só é plural enquanto conjunto. Como multiplicidades de (juris)produção de um mesmo julgador, a complexidade é isolada, reduzida, vilipendiada pela constituição personalíssima do círculo de compreensões de cada um que julga. Daí que imaginar a jurisprudência como multiplicidade, como pensou Deleuze, é esquecer o imobilismo de uma considerável parcela de julgadores que opta pelo que Alexandre Morais da Rosa chamou de hermenêutica do conforto. Essa inércia é produto de uma infantilização que nasce do fracasso de matar simbolicamente as referências paternas, de acabar com o ideário das hierarquias e de superar a falsa noção de que, a cada nova decisão, está-se diante de marco zero de sentido (Lenio Streck) capaz de alimentar a fajuta noção de imparcialidade daí decorrente.

A possibilidade de julgar é a aquisição da potência formal de realizar uma observação. Porém, uma natural inflação do Ego que julga tende a transformar a mera potência formal de realizar uma observação em uma potência substancial de realizar uma observação, ou seja, na capacidade empática necessária para julgar. Empatia é uma capacidade mágica de amenizar os sentidos próprios para indagar os sentidos que vêm do olhar alheio. Estar formalmente apto não significa deter a aptidão necessária. O primeiro passo — a aprovação no certame — muitas vezes se transforma em último, o que faz da aprovação uma unidade de qualificação para julgar.

O risco é que a capacidade de reconstrução coerente da narrativa dos fatos e fundamentos de um caso processual depende da potência substancial de observar, e não só da potência formal obtida com a aprovação no certame. Observar é realizar deslocamentos horizontais para produzir rizomas. Deslocar significa, sobretudo, trocar vizinhanças. Deslocar é realizar trânsito entre lugares de uma mesma unidade.

Na medida em que se substitui genealogias por geologias, altera-se eticamente a possibilidade de observação. A ética possível em qualquer julgamento é deter a possibilidade de deslocar-se para a pele de quem é julgado, indagando seus motivos, analisando a complexidade que cerca o sujeito. Quando todas as teorias da decisão são atropeladas diariamente pela contingência caótica das decisões em cada fórum ou tribunal, é preciso, além de criticar a incapacidade do julgador (senso) comum, fortalecer a capacidade transformadora da crítica — de quem emite em direção a seus alvos, ou seja, se se tratam de motivos nobres, até para criticar são necessárias estratégias no jogo da crítica[1].

Deslocando-se, o julgador poderá ver sua casa de sentidos à distância — e dessa distância poderá ver como ela se assemelha, por diminuta, às demais casas. Esse deslocamento é a virtude fugitiva da potência substancial de observar. Daí a importância do fôlego, do caminhar, de pernas grossas que sustentem um corpo de olhos andarilhos e perspectivos. O Pretor Peregrino romano, como julgador caminhante, tinha, ao choque da vista, a multiplicidade da rua. O julgador capaz de caminhar pela internet, poderá ser uma reedição bem-vinda dos julgadores romanos da realeza, depois do fim das lágrimas sobre a lápide deste direito. “Nos processos emancipatórios, o sujeito não se constitui autônomo como uma configuração fechada, precisa de um espaço de relações com o outro. É a partir do outro, reconhecido como diferença, que o sujeito descobre o sentido de sua própria identidade como alteração de sentidos e desejos”, diz Warat. Já foi dito pela poesia de Antonio Machado: caminhante o caminho não existe, o caminho acontece ao caminhar. Necessária, portanto, uma crítica horizontal, uma pedagogia horizontal, uma observação horizontal, um julgamento horizontal. Assim como uma crítica vertical só pode modificar santos, essa raça rara de gente, um julgamento vertical resolve processos e não conflitos, que são sempre da ordem do complexo.  As críticas verticais são o mesmo que estar apenas formalmente apto a julgar: no fim, ambas modificam pouco a realidade que pretendem atingir.


[1] Alexandre Morais da Rosa escreve um livro paradigmático, que inaugura a possibilidade de uma análise subjetiva mas, sobretudo, malandra da teoria da decisão. Ver Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2a ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2014.

  •  é advogado em Santa Catarina, professor universitário e mestre em Direito pela Unisinos-RS.

Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2014, 15:01h


Juiz Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê crime; equivale a Estado de Sítio

 

Juiz Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê crime; equivale a Estado de Sítio

publicado em 13 de julho de 2014 às 19:59

damasceno

Damasceno: “A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro”

por Conceição Lemes

Nessa sexta-feira 11, a 27ª Vara Criminal da cidade do Rio de Janeiro expediu 26 mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores de idade.

A maioria foi detida ontem.  Acusação: formação de quadrilha armada, com pena prevista de até três anos de reclusão.

Em entrevista coletiva nesse sábado, o chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Fernando Veloso, justificou: “Estamos monitorando a ação desse grupo de pessoas desde setembro do ano passado. A prisão delas vai impedir que outros atos de violência ocorram neste domingo”.

Veloso disse que a polícia fluminense tem provas “robustas” e consistentes” de que “essa quadrilha pretendia praticar atos violentos se não hoje, amanhã [domingo]”.

Na mesma coletiva , a delegada Renata Araújo, adjunta da Delegacia de Repressão à Crimes de Informática (DRCI), alegou: “Eles planejavam ataques e se aproveitavam de problemas reais para fazer manifestações onde usavam artefatos para incendiar ônibus, depredar agências bancárias, entre outros”.

“Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões”, denuncia o juiz João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.”

“Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade”, alerta.  “Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.”

“A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’ que investiga o futuro”, critica Damasceno. “Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.”

A propósito. Entre as coisas apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro na residência dos presos, há máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, máscaras de carnaval, computadores, livros de capa vermelha e um revólver.

“O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que é do pai do ativista, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica”, acusa Damasceno.

“A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais dos tempos de ditadura”, vai mais fundo. “Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.”

Segue a íntegra da nossa entrevista com João Batista Damasceno, que é juiz no Rio de Janeiro, doutor em Ciência Política e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Viomundo – Segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, as prisões seriam para impedir que atos de violência ocorressem neste domingo. A lei permite isso?

João Batista Damasceno – A Constituição dispõe que ninguém será considerado culpado sem que haja sentença condenatória transitada em julgado. Neste momento, estamos vivenciando casos de responsabilização antes que a pessoa cometa o fato tido como criminoso.

Não se trata apenas de prisão temporária, visando à apuração do fato cometido.  Nem prisão preventiva, para proteção do processo, ou seja, das testemunhas e garantia da execução penal, caso o acusado seja condenado.

Trata-se de prisão antecipada ao fato, que não se pode afirmar que aconteceria. A militante Elisa [Elisa Quadros, conhecida como Sininho] estava no Rio Grande do Sul e certamente não viria ao Rio de Janeiro para as manifestações de encerramento da Copa.

No Rio de Janeiro, já tivemos um chefe de polícia que se envolveu com o crime organizado internacional, no caso a máfia espanhola, apontada, na época, como responsável pelo tráfico internacional de drogas.

Seria um absurdo defender a prisão do atual chefe de polícia a fim de evitar que pudesse – no futuro – cometer os mesmos crimes que teriam sido cometidos por aquele chefe de polícia no final do século XX.

Perante a lei, o atual chefe de polícia merece a mesma consideração que os demais cidadãos brasileiros. A violação ao direito de uns permite que o direito de outros também seja violado, inclusive do próprio chefe de polícia.

Mas é preciso lembrar que tais prisões foram decretadas pelo poder Judiciário, que tem funcionado como auxiliar da polícia e do governo na violação aos direitos dos cidadãos. Assim, não se espera que funcione como órgão garantidor dos direitos.

Viomundo – Essas prisões são ilegais então?

João Batista Damasceno – Elas foram efetuadas a pedido da polícia, mas por decretação do Judiciário.

Do ponto de vista formal, a polícia fez o que o Judiciário autorizou. Claro que na execução da medida no Rio Grande do Sul os policiais fluminenses não poderiam ter atuado. Eles agiram fora do limite territorial do Estado do Rio de Janeiro. Atuaram com excesso de poder.

O delegado encarregado da diligência gravou vídeo da prisão da militante no Rio Grande do Sul, expondo indevidamente sua imagem, e disse estar em auxílio à polícia gaúcha. Mas vendo o vídeo percebe-se que toda a diligência foi efetuada pela polícia fluminense.

Trata-se de uma polícia, que, desde a condecoração dos homens do Esquadrão da Morte nos anos 60 pelo governado Carlos Lacerda, atua à margem da lei.

Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões.

Em entrevista, o chefe de polícia do Rio de Janeiro disse que tais militantes vinham sendo monitorados desde setembro de 2013 e que as prisões evitariam que participassem de manifestações neste domingo, final da Copa.

Porém, violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.

Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade. Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.

Viomundo – A Justiça determinou a prisão temporária. Por quê?

João Batista Damasceno — A prisão temporária, de discutível constitucionalidade, visa restringir a liberdade de uma pessoa a fim de coletar prova de crime que se tenha cometido.

A prisão temporária é uma prisão para preservar as provas, após a ocorrência de um crime. Trata-se de medida emergencial, por isso se afasta o suposto criminoso da cena do crime para a produção probatória necessária à sua acusação.

No caso presente, os militantes estavam sendo monitorados desde setembro de 2013. Não havia prova a ser coletada emergencialmente.

Fica cada vez mais evidente o reforço do Estado Policial, com exercício arbitrário do poder da polícia. Voltamos ao Brasil da Primeira República, quando a política se fazia com a polícia à frente. O estopim para a Revolução de 30 foi uma ação policial na casa da namorada de João Dantas, adversário do candidato a vice-presidente de Getúlio Vargas, João Pessoa.

revolver

Viomundon — A polícia do Rio apresentou várias coisas que teriam sido apreendidas nas residências presos. Pelas fotos publicadas na mídia, dá pra ver máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, um revólver…

João Batista Damasceno — O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente.  Só que o revólver é do pai desse ativista político, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica, legitimando a atuação da polícia.

A polícia tratou o adolescente como se ele fosse o dono da casa. E diante da demonstração de que seu pai era o detentor de porte legal de arma, lavrou-se um registro de omissão de cautela. É uma forma de justificar a apreensão de uma arma que não poderia ser apreendida.

A polícia buscou dar um aparato legal à apreensão, sob o fundamento de que aquele que tem a posse legal da arma, não a guardou adequadamente, tornando-a passível de apreensão. Mas isto não foi levado ao conhecimento da sociedade.

Viomundo – Pesa o fato de estarmos em ano eleitoral?

João Batista Damasceno  — Com certeza, e a polícia quer mostrar eficiência na intimidação de opositores das políticas públicas lesivas aos interesses do povo.

Curiosamente, essa mesma polícia que prendeu os jovens militantes não se moveu diante do que não foi apurado na CPI do Cachoeira. Tampouco diante do furto das vigas do elevado da Perimetral, no Rio de Janeiro.  Eram vigas com cerca 20 toneladas! Essa mesma polícia não foi capaz de esclarecer a autoria do furto, apesar de do grande volume e notável valor econômico.

Igualmente não foram esclarecidos pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) os crimes cometidos por policiais. E a DRCI é que está atuando contra os militantes presos.

Viomundo – Explique melhor isso.

João Batista Damasceno — Computadores de juízes fluminenses foram invadidos e hackeados e o fato somente se comprovou porque o Ministério Público o esclareceu. A delegada titular de então direcionou a investigação para as vítimas.

No ano passado, crimes contra um magistrado, praticados por policiais pela internet, igualmente terminaram sem qualquer apuração. De nada adiantou a reunião do delegado titular da DRCI no gabinete da então chefe de polícia, Martha Rocha. Nada se apurou. As investigações são seletivas.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes formou-se uma perversa aliança da mídia com a polícia. Já não se denunciam as arbitrariedades policiais como se fazia antes. O fato se agravou com a morte do cinegrafista Santiago de Andrade durante uma manifestação recente.

Não se registrou a morte do Santiago como uma fatalidade; nem que ele trabalhava sem os equipamentos de proteção que lhe deveriam ser fornecidos pela empresa de comunicação que o empregava.

A morte dele foi consequência da irresponsabilidade de militantes, que não desejavam sua morte, mas também da culpa grave do empregador que não lhe forneceu os meios adequados para proteção na cobertura de uma manifestação que se sabia poderia resultar confronto ou conflito, como ocorre no restante do mundo.

A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro. Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.

A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais. Durante a ditadura, a mesma polícia, fazia apreensão de livros pela cor da capa. Naquela época, não era a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, mas o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.

Viomundo  – O que representam essas prisões?

João Batista Damasceno – O apogeu da escalada do Estado Policial. Mas não é coisa que tenha sido formatada apenas pelo atual chefe de polícia. É parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais. A atuação tem sido similar em outros Estados. No Rio de Janeiro e em São Paulo ocorre maior repercussão. Mas esse tipo de atuação se intensificou após reunião dos secretários de Segurança dos estados no Ministério da Justiça.

É óbvio que nem tudo é coisa do governo federal; apenas a matriz. As polícias e o próprio Judiciário funcionam nesses episódios como forças auxiliares. O próprio chefe de polícia desempenha papel deste quilate.

O povo, para certo de tipo de político, só é bonito visto do palanque, para onde vai aplaudir o candidato. Assim, pensava Benedito Valadares, velho político mineiro, que cunhou tal frase.

Anastácio Somoza, ditador nicaraguense derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três segmentos: os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata e os inimigos, a quem destinava chumbo.

As atuais políticas públicas têm o mesmo viés. Mas quem ficou com o ouro foi a FIFA. Aos que não se domesticaram para receber a prata restaram demolições de casas, remoções de suas comunidades, repressão brutal e prisões.


Regime Inicial Fechado não é a regra

DIREITO PENAL. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA NO CRIME DE TORTURA.

 

Não é obrigatório que o condenado por crime de tortura inicie o cumprimento da pena no regime prisional fechado. Dispõe o art. 1º, § 7º, da Lei 9.455/1997 – lei que define os crimes de tortura e dá outras providências – que “O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado”. Entretanto, cumpre ressaltar que o Plenário do STF, ao julgar o HC 111.840-ES (DJe 17.12.2013), afastou a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados, devendo-se observar, para a fixação do regime inicial de cumprimento de pena, o disposto no art. 33 c/c o art. 59, ambos do CP. Assim, por ser equiparado a crime hediondo, nos termos do art. 2º, caput e § 1º, da Lei 8.072/1990, é evidente que essa interpretação também deve ser aplicada ao crime de tortura, sendo o caso de se desconsiderar a regra disposta no art. 1º, § 7º, da Lei 9.455/1997, que possui a mesma disposição da norma declarada inconstitucional. Cabe esclarecer que, ao adotar essa posição, não se está a violar a Súmula Vinculante n.º 10, do STF, que assim dispõe: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. De fato, o entendimento adotado vai ao encontro daquele proferido pelo Plenário do STF, tornando-se desnecessário submeter tal questão ao Órgão Especial desta Corte, nos termos do art. 481, parágrafo único, do CPC: “Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. Portanto, seguindo a orientação adotada pela Suprema Corte, deve-se utilizar, para a fixação do regime inicial de cumprimento de pena, o disposto no art. 33 c/c o art. 59, ambos do CP e as Súmulas 440 do STJ e 719 do STF. Confiram-se, a propósito, os mencionados verbetes sumulares: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.” (Súmula 440 do STJ) e “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.” (Súmula 719 do STF). Precedente citado: REsp 1.299.787-PR, Quinta Turma, DJe 3/2/2014. HC 286.925-RR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/5/2014.


Abordagem sem motivo. Levando a sério o 240 do CPP

 

Não é crime desobedecer policial em abordagem sem motivo

18 de maio de 2014, 08:46h

Por Jomar Martins

O parágrafo segundo do artigo 240 do Código de Processo Penal diz que a autoridade policial só pode fazer busca e apreensão pessoal se existir fundada suspeita de cometimento de crime ou de ocultação de objetos. A observação fiel deste dispositivo levou o 2º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a absolver um usuário de drogas denunciado por se negar à revista pessoal durante abordagem policial feita em Bagé.

O caso provocou Embargos Infringentes no colegiado após a Apelação ter confirmado os termos da sentença condenatória por crime de desobediência pela maioria dos membros da 4ª Câmara Criminal, dando chance à defesa de nova interposição de recurso.

‘‘O réu estava tão-somente andando pela via pública, em situação que não indicava qualquer atitude suspeita (como mesmo disse o policial), e pelo simples fato de ser pessoa com antecedentes, ou ‘conhecida’ da polícia, tornou-se alvo certeiro de revista aleatória e desnecessária. O motivo explanado não autoriza o uso abusivo do poder de busca pessoal, não podendo o réu ficar sujeito a abordagens fortuitas pelo simples fato de estar caminhando na rua’’, escreveu no acórdão o relator dos Embargos Infringentes, desembargador Diógenes Hassan Ribeiro.

Se a revista não foi fundada, destacou o relator, a recusa em submeter-se a ela foi lícita. Isso porque, no fim das contas, nada foi encontrado com o réu que indicasse que a resistência tivesse o fim de ocultar objeto de crime.

‘‘No mais, como bem argumentou o voto divergente, o estado de alteração em que se encontrava o réu era passível de determinar a sua reação em negar-se a submissão da abordagem. O mesmo, ao assumir o fato, justificou que estava sob o efeito crack’’, encerrou. O acórdão foi lavrado na sessão do dia 11 de abril.

O caso
De acordo com o Ministério Público estadual, o fato que deu margem à denúncia ocorreu na madrugada de 4 de maio de 2011, na Avenida 7 de Setembro, na Comarca de Bagé, na fronteira com o Uruguai. Abordado pela Polícia Militar, um usuário de crack desobedeceu a ordem de postar-se junto à parede para a revista pessoal. Os policiais só conseguiram fazer a revista mediante o uso de força e de algemas.

Em vista da resistência, o homem acabou incurso nas sanções do artigo 330,caput, do Código Penal: desobedecer a ordem legal de funcionário público. Embora admitisse a infração, disse que agiu desta maneira porque tinha acabado de fazer uso da droga.

Citada, a defesa alegou falta de provas consistentes para o juízo de condenação. Argumentou que o réu não teve a intenção de desprestigiar ou atentar contra a dignidade da Administração Pública, mas somente o intuito de se ver livre de possível flagrante. Logo, ausente o dolo indispensável à caracterização do delito.

A sentença
O juiz Cristian Prestes Delabary, da 2ª Vara Criminal da comarca, disse que o denunciado, ao desobedecer as ordens dos policiais, tinha ciência de que agia em desconformidade com a lei, não importando se o fez com receio de ser preso em flagrante. ‘‘Também não afasta a responsabilidade penal do denunciado o fato de ter utilizado substância entorpecente, não restando demonstrado que tal fator tenha privado o réu de sua consciência no momento da prática delituosa, de modo a afastar o elemento subjetivo do tipo’’, complementou, condenando-o nos termos da denúncia oferecida pelo MP.

Assim, o réu foi condenado à pena de 15 dias de detenção, em regime inicial aberto, e a 10 dias-multa, à razão de 1/30 avos do maior salário-mínimo vigente ao tempo do fato. Na dosimetria, a pena privativa de liberdade foi substituída por uma restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária, no valor de meio salário-mínimo. A sentença desagradou a defesa, que entrou com Apelação no TJ-RS.

A Apelação
Ao julgar o recurso, a maioria dos integrantes da 4ª Câmara Criminal se alinhou à tese da sentença, mantendo a condenação nos termos em que fundamentada na origem.

O desembargador Rogério Gesta Leal, no entanto, apresentou voto de divergência, por entender que o denunciado deixou de atender a ordem de revista porque estava sob efeito do crack. ‘‘Assim, em que pese a condição do acusado, por ocasião do fato, não ser excludente da culpabilidade, considero que foi determinante para a sua negativa de ser abordado, até porque, conforme a testemunha, ele não pronunciou nenhuma palavra agressiva, indicando a ausência de dolo pelo agente’’, escreveu no seu voto.

Em favor de sua tese, reportou-se ao desfecho de um julgamento na Turma Recursal Criminal, ocorrido em 4 de novembro de 2013, sob a relatoria do juiz Edson Jorge Cechet. Diz o acórdão: ‘‘Embora a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclua a imputabilidade penal, todavia, no caso, consta dos autos que o acusado estava sob efeito de álcool, não se podendo concluir estivesse agindo com dolo de menosprezar a função pública. Impraticável se concluir a respeito da efetiva capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se sobre ele’’.

Assim, o desembargador deu provimento ao apelo do réu, absolvendo-o com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal — o fato descrito na inicial não constitui infração penal.

A defesa do réu voltou à carga no TJ-RS, interpondo Embargos Infringentes, para fazer valer o voto minoritário. A matéria foi analisada pelo 2º Grupo Criminal, formado pelos integrantes da 3ª e 4ª Câmaras Criminais, responsáveis pela uniformização da jurisprudência nesta área.

Clique aqui para ler o acórdão dos Embargos Infringentes.
Clique aqui para ler o acórdão de Apelação.
Clique aqui para ler a sentença.


Monografia que mostra o perfil das Varas Criminais de Florianópolis – TJSC

Vale conferir a monografia de Thiago Apolinário Michelon

 

clique ao lado DIR2012-1 – THIAGO APOLINÁRIO MICHELON


Furto e Aplicação da Pena – STF

Vale a pena ler o julgado abaixo. O medo na aplicação da pena faz com que se precise ir ao STF para, com sorte, destruir-se a fraude na aplicação da pena.

Fundamentação inidônea. Mas se não há defensores, tudo se resolver nos Tribunais dos Estados, onde vigora uma lógica de Defesa Social, na sua grande maioria, embora poucos saibam que assim operam. Leia abaixo.

HC STF


Pastorado Contemporâneo, por Kleber Prado Filho

Indicação de Maíra Marchi Gomes

Leia o texto que desenvolve a noção de pastoreiro. Abaixo. Basta clicar.

Texto_Kleber

 


Inimputável e Falta de Lugar – HC concedido – STJ

DIREITO PENAL. ILEGALIDADE NA MANUTENÇÃO DE INIMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.

É ilegal a manutenção da prisão de acusado que vem a receber medida de segurança de internação ao final do processo, ainda que se alegue ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. Com efeito, o inimputável não pode, em nenhuma hipótese, ser responsabilizado pela falta de manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança, por ser essa responsabilidade do Estado. Precedentes citados: HC 81.959-MG, Sexta Turma, DJ 25/2/2008; RHC 13.346-SP, Quinta Turma, DJ 3/2/2003; e HC 22.916-MG, Quinta Turma, DJ 18/11/2002. RHC 38.499-SP, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.


STJ – Insignificância

HC 218234/SP

“CRIMINAL. HABEAS CORPUS. FURTO SIMPLES. CONE DE TRÂNSITO. ÍNFIMO VALOR DO BEM. ALEGAÇÃO DE QUE O FATO FOI UMA BRINCADEIRA. REEXAME DE PROVAS. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. INCONVENIÊNCIA DE MOVIMENTAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. I. A afirmação contida na impetração de que a “conduta não passou de uma brincadeira”, não pode aqui ser analisada, porquanto implicaria em reexame de provas. II. A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado. III. Hipótese na qual a impetração sustenta que a conduta dos pacientes não se subsume ao tipo do art. 155 do Estatuto Repressor, em face do pequeno valor econômico da mercadoria subtraída e logo após recuperada pela Polícia Militar Estadual. IV. O bem subtraído – um cone de trânsito – possui importância reduzida, devendo ser ressaltada a condição econômica do sujeito passivo, pessoa jurídica, que recuperou o bem furtado, inexistindo, portanto, repercussão social ou econômica, atraindo a incidência do princípio da insignificância. V. Não obstante o valor da res furtiva não ser parâmetro único à aplicação do princípio da insignificância, as circunstâncias e o resultado do crime em questão demonstram a ausência de relevância penal da conduta, razão pela qual deve se considerar a hipótese de delito de bagatela. VI.Deve ser aplicado o princípio da insignificância à hipótese, sendo que, mesmo que a ação penal já esteja em andamento, esta deve ser trancada, caso contrário, encerre-se o inquérito policial VII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (HC 218.234/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2012, DJe 20/03/2012)”


Variáveis ocultas e efeito borboleta na decisão penal

Variáveis ocultas e efeito borboleta na decisão penal

Por Alexandre Morais da Rosa

Nenhuma teoria do senso comum teórico (Warat) da decisão penal é capaz de apresentar todas as variáveis intervenientes na decisão judicial. Jorram falas, imagens, teorias, julgados, autores, recortes antigos, a vida pregressa, as contas para pagar, a pressa para pegar os filhos no colégio, o cheiro da sala, a temperatura do ar condicionado. Enfim, não se pode saber quais as condições físicas e mentais do momento da coleta da informação e muito menos no momento da prolação da sentença. E cada um desses significantes pode alterar tudo, conforme o efeito borboleta (veja o vídeo abaixo para entender): em síntese, uma pequena alteração pode gerar resultados imprevisíveis.

Inexiste conhecimento direto sobre os fatos — salvo do crime acontecido na sala de audiência, mas julgado posteriormente por outro julgador. Todo material probatório é de segunda mão, nos autos ou fora dele: o julgador e jogadores constroem narrativas em face de um evento passado, com as informações que estão à disposição. Nesse articular, a forma em que os fatos serão ajustados pode mudar o sentido.

A reconstrução do fato criminoso é sempre retratada por uma imagem ou filme (apresentada na denúncia/queixa) e que, analisada em face do que há antes (inquérito policial, auto de prisão em flagrante ou documentos) indica a existência de justa causa (informação mínima de materialidade e autoria) capaz de justificar a tipicidade aparente da conduta. Daí que se opera com imagens superpostas e narrativas controversas. Constrói-se uma narrativa englobante da acusação e daí em diante o jogo processual será de preencher ou esvaziar a história/imputação.

Uma estratégia utilizada é a de colocar o mínimo de detalhes na acusação, narrando os fatos genericamente, antecipando, com isso, as inconsistências de informação (prova). Quanto mais detalhada for a descrição, mais chances de inconsistência. O limite disso acontece na impossibilidade de se defender de fatos. Por exemplo, analise as seguintes opções: a) entre os anos de 1998 a 2007 o acusado que atuava como empregado da vítima subtraiu para si dois pingentes de ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$ 800, os quais não foram recuperados; b) no dia 17 de maio de 2006, entre 19h e 20h30, na residência da vítima, o acusado subtraiu para si dois pingentes de ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$ 800, os quais não foram recuperados. Qual das duas descrições é mais fácil de ser acolhida na sentença? Evidentemente que a primeira. O devido processo legal substancial pressupõe que o sujeito seja acusado de uma conduta específica, no tempo e no espaço. Acusações genéricas, com longo espaço de tempo, tornam a defesa impossível, sendo uma trapaça processual, no que já denominei de doping processual.

Na imagem que se forma na maneira como pensamos, encontram-se os estereótipos. Ou seja, as representações cristalizadas que não se baseiam naquele caso específico, mas nas experiências anteriores (lugar em que o fato se deu, moradia dos envolvidos, profissão, beleza ou feiura, idade, cor, sobrenome, status social, antecedentes etc.). Não me venham histericamente dizer que isso não importa. Concordo teoricamente.

Na prática, isso acontece todos os dias e é melhor estar preparado para esse tipo de captura psíquica do que fingir que não importa. Parem de ser platônicos, pois estamos justamente na dobra platônica, onde o sentido é colonizado pelo silêncio que diz. Os estereótipos simplesmente formam parte do arsenal de sentidos e operam. Queiramos ou não. Podem se basear em preconceitos, lugares comuns, influência da mídia etc. Se queremos ser minimamente honestos, devemos admitir a influência de fatores externos, como por exemplo, a leitura do jornal do dia, a conversa do almoço, do café com os vizinhos, da lembrança de que fomos um dia furtados… Respondemos no decorrer do processo com aquilo que nos faz sentido, seja ele qual for (louquíssimo, muitas vezes). Quanto mais entendermos o mecanismo aleatório de atribuição de sentido, mais teremos credibilidade pelo que se passa no processo penal. Como operamos com imagens, não raro tomamos uma coisa por outra, atribuímos peso demasiado e, muitas vezes, imaginamos errado. E destruir uma imagem cristalizada é muito complicado.

Franco Cordero chamou isso de postura paranoica, ou seja, o primado das hipóteses sobre os fatos, como visto anteriormente, tão bem articulada no Brasil por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, via psicanálise. Essa ancoragem antecedente em imagens pode gerar a fixação do convencimento e as informações trazidas no decorrer da instrução processual servem para simples confirmação, seja de que qualidade for. Essa postura paranoica é sedutora. Em primeiro lugar, pensando do ponto de vista histórico, o julgador é colocado como portador da (imaginária) Verdade Real[1], potencializada pela teoria de processo (relação jurídica) pela qual os jogadores dão os fatos e o juiz o direito.

Em segundo, adotando-se a contribuição da psicanálise[2], pode-se dizer que o paranoico caracteriza-se pelo delírio de perseguição sistematizado, acrescido de delírios de ciúmes, deerotomania e de grandeza. Na matriz contratualista e de estabelecimento da civilização encontram-se traços paranoicos de desconfiança recíproca, sendo o Estado o terceiro que poderia fazer laço social. No contexto atual das relações humanas, o traço paranoico se apresenta em qualquer sensação de exclusão, colocando-se na condição de vítima e se acreditando que a ação do outro é dirigida especialmente ao sujeito.

A manifestação paranoica se dá pela certeza do sujeito em possuir a verdade e não qualquer verdade, mas a Verdade Real. Portador da verdade é capaz de pontificar, apresentar a solução para todos os problemas, indicar as causas e as soluções, enfim, postar-se no lugar de Salvador. E a tentação de ocupar esse lugar é permanente, afinal, não seria maravilhoso poder reparar o mundo, reformar as coisas, ajudar as pessoas a andarem no caminho certo e do bem? A pergunta é a posta por Agostinho Ramalho Marques Neto[3]: quem nos salva da bondade dos bons? Paranoicos, acrescento eu. A estrutura psíquica do sujeito é singular, pois vai depender da passagem pelo traumatismo de se perceber não mais o objeto de satisfação da mãe. Não complicarei mais, há referências para quem quiser entender. O mais interessante, todavia, é que o paranoico procurar ser parado, está à procura de um limite, de alguém ou algo que o possa deter.

Se os jogadores do processo, em regra, não sabem dos fatos que serão articulados, já que receberam a narrativa de terceiros, o que não sabem do evento é mais importante do que sabem. Daí que se instalam duas posições: conforto pelo que é trazido ou angústia pelo que não é trazido. Não raro se concentra somente no que é trazido, esforçando-se para que do material informativo tragado para o contexto do jogo se possa elaborar uma narrativa minimante coerente, conforme a acusação.

A tendência mental é a de buscar a confirmação do narrado, ter aversão ao argumento defensivo, construir narrativas frágeis de conforto, rejeitar as emoções e aspectos biológicos como variáveis da decisão, fechando os olhos para os truques, trunfos e silêncio do processo. Taleb[4] afirma que diante da opacidade do mundo articulamos três grandes redutores de complexidade, ou seja, nos autoenganamos de que temos: a) a ilusão da compreensão; a certeza ingênua de que sabemos o que está acontecendo em um mundo mais complicado do que percebemos; b) a distorção retrospectiva: como realizamos uma tarefa de contar o fato criminoso como se estivéssemos olhando pelo retrovisor a história aparenta ser mais clara e organizada do que o mundo de fato é; c) supervalorização da informação factual: a deficiência das pessoas em compreenderem a complexidade a partir de teorias simplificadoras e platônicas.

A reconstrução do caso penal se dá pelas narrativas dos envolvidos — vítima(s) e acusado(s) — e de terceiros (informantes, testemunhas e peritos), bem assim por imagens (gravações em vídeo, reproduções etc.) e sons (áudio, interceptação de conversas) e escritos (interceptação de dados, cartas, e-mails, etc.). Busca-se compulsivamente estabelecer “A” história, recontando como se tudo pudesse ser, efetivamente, reproduzido no futuro. Um remake do evento.

Amarrados ao pensamento causalista (causa e efeito), avessos à complexidade das versões paralelas e coerentes ao mesmo tempo, remontam a história com uma boa dose de imaginário. Isso promove a sensação de compreensão do ocorrido, “como se” os jogadores e o julgador passassem, daí em diante, a ser testemunhas diretas do ocorrido. Não se trata mais do evento histórico, mas do que se fala dele, perdendo, assim, a sua singularidade. Somos treinados a dar sentido, explicar os fenômenos, acoplando tipos penais, incapazes de aceitar o não saber.

Recordar eventos passados exige que o sujeito (testemunha, informante, acusado, vítima, perito) possa dar sentido ao fragmento de momentos que teve conhecimento. Daí que a memória é filtrada e limitada, relegando o que não faz sentido e se focando naquilo que possa explicar o “caso penal”. Não raro se quer que a prova responda simplesmente: (não) aconteceu. Como se as demais circunstâncias fossem irrelevantes.

O esforço narrativo do declarante é sempre retrospectivo. Daí que uma das táticas dos jogadores é inverter a ordem das perguntas, a saber, ao invés de indagar o sujeito na lógica linear, pede-se para que conte do final para o início. A história decorada e prenhe de sentidos pode ficar em curto-circuito. Mas sempre é arriscado e depende qual a estratégia utilizada[5]. Especialmente quando há interesses na condenação/absolvição, a seleção dos eventos relevantes ao lado que se pretende favorecer não deixa de ser uma modalidade de doping processual, de certa forma de trapaça.

Além disso, as informações trazidas pelos depoentes são articuladas em arrazoados que buscam (des)confirmar as teses apresentadas pelos jogadores e como linguagem que são, servem à manipulação. Daí que significantes abertos (perto, longe, medo, parecido, alto, baixo, etc.) são matreiramente utilizados para depois servirem de material confirmatório. E o mundo, todavia, é vago. Ademais, quando mais articulado o narrador, melhor aparentará a sedutora narrativa, a qual junta materiais de informação e costura um sentido que joga com o imaginário de jogadores e especialmente julgador, lembram José Calvo González e André Karam Trindade. E depois há o efeito semblante de que a decisão é o retrato retrospectivo do que se passou, isento de ausências e inconsistências. E isso preocupa, bem sabem Lenio Streck e Aury Lopes Jr. Mas seria muito complicado aos julgadores admitir que julgam sem saber, salvo aos honestos. A situação poderia ser diferente se tivéssemos dado o salto de qualidade em face da resposta correta, como defende Dworkin e, no Brasil, Lenio Streck. Enquanto as decisões forem inautênticas do ponto de vista hermenêutico, a borboleta está solta.


[1] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 361: “Dizer que a verdade é contigencial significa abrir mão desse fim – a busca da verdade – e assumir outro horizonte, no qual o juiz deverá estar predisposto a absolver, por exigência da presunção de inocência: em outras palavras, o valor inocência deve ser estruturante e fundador do processo penal, inclusive no que se refere à missão e função do juiz, possibilitando dessa forma o rompimento com a epistemologia inquisitória orientada à persecução do inimigo.”
[2] MELMAN, Charles. Como alguém se torna paranoico?. Trad. Telma Queiroz. Porto Alegre: CMC, 2008.
[3] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a priori’, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (…) Enfim, é necessário, parece-me, que a sociedade, na medida em que o lugar do Juiz é um lugar que aponta para o grande Outro, para o simbólico, para o terceiro.”.
[4] TALEB, Nassim Nicholas. A Lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. Trad. Marcelo Schild. São Paulo: Best Seller, 2012, p. 37.
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.

Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2014