Arquivo do mês: julho 2014

Sobre recentes manifestações a respeito de Israel, por Éder Silveira

 
Sobre recentes manifestações a respeito de Israel
Éder Silveira
Doutor em História pela UFRGS
Professor na UFCSPA
Duas manifestações de parte de cronistas do jornal Zero Hora, quais sejam, a coluna de David Coimbra “O nosso modelo”, publicada em 18 de julho de 2014 e “Como curar um fanático”, assinada por Cíntia Moscovich e publicada no dia 21 de julho de 2014, tocam em um tema da maior importância e que vem merecendo meditação por parte de inúmeros intelectuais e ativistas em diversas partes do mundo: os ataques israelenses contra regiões da Palestina.
Gostaria de tecer alguns comentários sobre ambos os textos, para que, no mínimo, exista um contraponto, ainda que a repercussão de ambos não seja comparável àquilo que escreve um professor universitário.
Começo pelo primeiro. Em parte de suas crônicas mais recentes, Coimbra vem tecendo comparações entre os EUA e o Brasil. Esse procedimento, bastante antigo, via-de-regra assume duas posições. Ou tudo aquilo que é estrangeiro é ruim, pois o Brasil seria o melhor de todos os lugares (as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá, já dizia o poeta exilado em Portugal), ou a nova realidade é maravilhosa e deve servir de modelo a todos nós. Mais de uma vez, o cronista assumiu a segunda via.
Na crônica supracitada, ele ardilosamente parte de um exemplo comezinho, de algo que faz parte do cotidiano mais singelo. Ele descreve um parque infantil, no qual pais e crianças podem se divertir com tranquilidade. Lá, os brinquedos são novos e bem cuidados. “Estranhos” sozinhos são detidos pela polícia, sempre vigilante. Ninguém rouba ou estraga os brinquedos. Um ambiente protegido, onde todos podem viver em paz, até mesmo porque a polícia está sempre perto.
Esse exemplo nos toca? Em grande medida, sim. Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos cidadãos das grandes cidades brasileiras é a dificuldade de usufruir do espaço público. Todos nós desejamos lugares bem cuidados e seguros, de preferência ao ar livre. Quem seria contrário a espaços públicos que fossem devidamente mantidos pela administração pública? Entre nós, indiscutivelmente, é maior o investimento em espaços privados e comerciais, como os shopping centers, tristemente convertidos em espaços de lazer. Tudo o que desejamos é o oposto da privatização do espaço público.
Lançando mão desse jogo de oposições, aquilo que “eles” possuem e são versus aquilo que nós não possuímos e não somos, o cronista sentencia: trata-se de “um estágio mais avançado da civilização. Um modelo a ser seguido”. Embasa essa observação com aquilo que ouviu de uma brasileira que trabalha como babá nos EUA: lá a prioridade são as crianças e os velhos. Creio que essa dicotomia, uma meia verdade, deveria ser analisada com vistas ao modo como certos idosos e crianças são tratados quando não dispõem de seguro-saúde, por exemplo, mas não há espaço para detalhar esses pontos. Assim sendo, sigo.
Não satisfeito, o cronista passa a pontificar. Ele sugere que nós, brasileiros, deveríamos nos espelhar nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e em Israel. Segundo ele, Israel “é uma democracia que respeita seus cidadãos”. Afirma isso e, logo em seguida, completa, em Israel “as crianças têm educação” e “as mulheres não são obrigadas a sair à rua debaixo de um lençol preto”. Segundo ele, esse é o “tipo de Brasil que os brasileiros querem”.
Não tenho dúvidas de que Israel respeite os “seus cidadãos”. Desejamos, no entanto, Estados que respeitem as pessoas, todas as pessoas, independente de sua nacionalidade, cor da pele ou credo religioso. Desejamos aquilo que Jacques Derrida viria a chamar de “hospitalidade incondicional”. Desejamos discutir as possibilidades de paz e de perdão, tomando o respeito à alteridade como um princípio fundamental. Caricaturas vulgares, tais como as empregadas pelo cronista, falam mais a seu respeito do que daqueles a quem procura caricaturar. Os trajes femininos islâmicos (Burca, Xador, Niqab, Hijab, Abaya), ainda que possam ser vistos como diferentes aos nossos olhos, pertencem a um universo cultural rico, a uma cultura milenar e a um conjunto de códigos que David ainda não conhece.
O cronista completa a sua reflexão lamentando que ao redor do Mundo pessoas de todas as nacionalidades e credos religiosos se manifestem pedindo o cessar-fogo. A desproporcionalidade das forças de Israel com relação ao poder de fogo dos palestinos não pode ser comparada. Dados da organização humanitária B’Tselem afirmam que, de 2000 até o momento, cerca de 7 mil palestinos foram mortos contra menos de 400 israelenses. E, bem-sabido, uso esses números como mera ilustração, uma vez que nenhuma morte pode ser tolerada, de nenhuma parte.
Aqui, passo para a crônica da escritora Cíntia Moscovich. Incomodada com uma nota oficial, publicada pelo Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores, na qual o partido “condena os ataques e o terrorismo de Estado praticado por Israel” e onde são pedidos o cessar-fogo e a abertura das negociações de paz. A autora recomenda, então, as reflexões do importante escritor israelense Amós Oz, especialmente o livro “Contra o Fanatismo”.
A conclusão tirada pela autora do livro em questão é a seguinte: no Oriente Médio, a luta não é entre dois povos, mas sim “entre o fanatismo e a tolerância”. Fico em dúvida se o pêndulo da autora está entre dois imperativos éticos ou entre os dois lados do infame muro que lá está. A autora defende que “ambos os lados concedam que a ideia de ‘varrer Israel do mapa’ se transforme no reconhecimento do Estado judeu e que se funde a paz em nome do direito de todos”. Esse argumento é curioso, uma vez que o Estado de Israel, ao contrário daquilo que era sonhado por inúmeros pensadores libertários, não foi fundado na comunhão, mas sim em uma política sionista e artificial que vem procurando expandir o território israelense sobre a palestina há décadas.
Quando a ação militar israelense é criticada, lançar mão de sugestões de antissemitismo é uma estratégia das mais baixas. Não se trata de antissemitismo, se trata da defesa da paz que só pode ser imaginada a partir de um cessar-fogo que deve partir de Israel. Ser contra as ações militares na Faixa de Gaza não significa ser antissemita, significa aprender a lição amarga deixada por todos aqueles que perderam a vida nos pogroms ou nos campos de concentração em nome da intolerância. Significa reconhecer o medo nos olhos da menina palestina, que em meio ao caos, cobriu os olhos da sua boneca para que ela não visse o que os homens são capazes de fazer.
Éder Silveira
Doutor em História – UFRGS
Professor da UFCSPA

LEAL BRASIL – Informes

 

LEAP BRASIL

 

INFORMES

3° bimestre 2014

 

JUNHO

LEAP já é organização da sociedade civil com status consultivo especial junto ao ECOSOC da ONU

O Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da Organização das Nações Unidas (ONU), na sessão de coordenação e administração de abril de 2014, adotou a recomendação do Comitê de Organizações Não-Governamentais e concedeu status consultivo especial à Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) junto àquele Conselho da ONU. Como antes destacado, essa é importante conquista, que, certamente, em muito contribuirá para o avanço da luta pelo fim da nociva e sanguinária política de “guerra às drogas”, através da necessária legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas, passo inseparável da luta pela efetivação dos direitos humanos em todo o mundo.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=254&mes=6

 

Relatório da Comissão da África Ocidental sobre Drogas

Lançado Relatório da Comissão da África Ocidental sobre Drogas (WACD), criada por Kofi Annan, ex-Secretário Geral das Nações Unidas e presidida por Olusegun Obasanjo, ex-Presidente da Nigéria. Embora constatando a falência e os danos provocados pela proibição e sua política de guerra às drogas, o Relatório limita-se a propor a descriminalização da posse para uso pessoal das substâncias proibidas, assim deixando intocada a ilegalidade do mercado daquelas substâncias proibidas e suas graves consequências. De todo modo, o lançamento do Relatório marca a presença da África no questionamento da falida e danosa política de proibição às arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas. Esse crescente questionamento no cenário global certamente levará em futuro que se avizinha ao fim da nociva e sanguinária “guerra às drogas” e à substituição da proibição por um sistema de legalização e consequente regulação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=253&mes=6

 

Decreto 8262/2014: o exemplo da regulação do tabaco

Publicado o Decreto 8262/2014, que traz alterações ao Decreto 2018/96, regulamentador da brasileira Lei 9294/96, alcançando dispositivos referentes a restrições a produtos derivados do tabaco. A edição do novo decreto traz à tona, mais uma vez, o exemplo exitoso do tratamento legal dado ao tabaco, não só internamente no Brasil, como em âmbito mundial. Tal exemplo se contrapõe ao retumbante fracasso da ilegítima, insana e danosa proibição e sua nociva e sanguinária “guerra às drogas”, em seu alegado objetivo de reduzir a disponibilidade das arbitrariamente selecionadas substâncias tornadas ilícitas. Com efeito, a única diminuição significativa no consumo de drogas, nos últimos anos, se refere exatamente ao tabaco – droga legalizada –, cujo consumo, inclusive no Brasil, se reduziu pela metade. Esse resultado foi obtido sem proibição, sem guerras, sem prisões. Ninguém foi morto ou preso por produzir, vender ou usar tabaco.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=250&mes=6

 

MAIO

Decreto regulamentador da lei que dispõe sobre o mercado legalizado de maconha no Uruguai

Foi firmado em 6 de maio, pelo Presidente da República do Uruguai, José Mujica e pelo Conselho de Ministros, o decreto regulamentador da Lei 19.172, que cria o mercado regulado da maconha  naquele país. Contendo 104 artigos, o decreto especifica os diversos aspectos da regulação consequente à legalização da produção, do comércio e do consumo daquela droga.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=255&mes=5

 

LEAP BRASIL presente em audiência pública na CCJ do Senado

Representando a LEAP BRASIL, sua presidente, juíza (aposentada) Maria Lucia Karam, prestou depoimento na audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, convocada para “debater a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal e a constitucionalidade do art.28 da Lei 11.343, de 2006”. A audiência, sob a presidência do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE), se realizou no dia 20 deste mês de maio.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=247&mes=5

 

Professores de Economia, ganhadores do Prêmio Nobel, se manifestam pelo fim da “guerra às drogas”

Após a significativa manifestação de penalistas alemães, instando o parlamento de seu país a pôr fim à proibição das drogas tornadas ilícitas, a falida e danosa política de “guerra às drogas” é mais uma vez contestada de forma igualmente significativa, agora na voz de importantes professores de Economia. Relatório lançado pela London School of Economics and Political Science traz entre seus prefaciadores cinco ganhadores do Prêmio Nobel de Economia: Professor Kenneth Arrow (1972); Professor Vernon Smith (2002); Professor Thomas Schelling (2005); Professor Oliver Williamson (2009); e Professor Sir Christopher Pissarides (2010), apontando que a adoção de uma global estratégia repressiva e militarizada, fundada na “guerra às drogas”, tem produzido enormes resultados negativos e danos colaterais e que gastos com tais políticas punitivas, geralmente em detrimento de políticas de saúde, não mais podem se justificar.

http://www.leapbrasil.com.br/noticias/informes?ano=2014&i=238&mes=5

 


CONJUR – Julgador capaz de caminhar pela internet será bem-vindo, por Paulo Ferrareze Filho

 

PRETOR PEREGRINO

Julgador capaz de caminhar pela internet será bem-vindo

21 de julho de 2014, 15:01h

Por Paulo Ferrareze Filho

Para Deleuze, a jurisprudência é uma pulsão do sistema jurídico que dá folego e mantém vivos, a cada nova decisão, o múltiplo e o contingente. Warat retrucou: Deleuze não leu Deleuze! Para Warat, acreditar que a jurisprudência possa materializar a diferença em cada decisão é o mesmo que acreditar nas desculpas que as adúlteras de Nelson Rodrigues contam para seus maridos fiéis quando chegam em casa tarde da noite, ofegantes e enrubescidas de tesão e culpa.

Quando Deleuze elogia a jurisprudência como locus de materialização de cada parte do múltiplo, esquece que o fundamento casuístico, realizado por quem está afundado em significados dados de antemão, não cumpre com sua virtuosa tentativa de compreensão da complexidade.

A jurisprudência só é plural enquanto conjunto. Como multiplicidades de (juris)produção de um mesmo julgador, a complexidade é isolada, reduzida, vilipendiada pela constituição personalíssima do círculo de compreensões de cada um que julga. Daí que imaginar a jurisprudência como multiplicidade, como pensou Deleuze, é esquecer o imobilismo de uma considerável parcela de julgadores que opta pelo que Alexandre Morais da Rosa chamou de hermenêutica do conforto. Essa inércia é produto de uma infantilização que nasce do fracasso de matar simbolicamente as referências paternas, de acabar com o ideário das hierarquias e de superar a falsa noção de que, a cada nova decisão, está-se diante de marco zero de sentido (Lenio Streck) capaz de alimentar a fajuta noção de imparcialidade daí decorrente.

A possibilidade de julgar é a aquisição da potência formal de realizar uma observação. Porém, uma natural inflação do Ego que julga tende a transformar a mera potência formal de realizar uma observação em uma potência substancial de realizar uma observação, ou seja, na capacidade empática necessária para julgar. Empatia é uma capacidade mágica de amenizar os sentidos próprios para indagar os sentidos que vêm do olhar alheio. Estar formalmente apto não significa deter a aptidão necessária. O primeiro passo — a aprovação no certame — muitas vezes se transforma em último, o que faz da aprovação uma unidade de qualificação para julgar.

O risco é que a capacidade de reconstrução coerente da narrativa dos fatos e fundamentos de um caso processual depende da potência substancial de observar, e não só da potência formal obtida com a aprovação no certame. Observar é realizar deslocamentos horizontais para produzir rizomas. Deslocar significa, sobretudo, trocar vizinhanças. Deslocar é realizar trânsito entre lugares de uma mesma unidade.

Na medida em que se substitui genealogias por geologias, altera-se eticamente a possibilidade de observação. A ética possível em qualquer julgamento é deter a possibilidade de deslocar-se para a pele de quem é julgado, indagando seus motivos, analisando a complexidade que cerca o sujeito. Quando todas as teorias da decisão são atropeladas diariamente pela contingência caótica das decisões em cada fórum ou tribunal, é preciso, além de criticar a incapacidade do julgador (senso) comum, fortalecer a capacidade transformadora da crítica — de quem emite em direção a seus alvos, ou seja, se se tratam de motivos nobres, até para criticar são necessárias estratégias no jogo da crítica[1].

Deslocando-se, o julgador poderá ver sua casa de sentidos à distância — e dessa distância poderá ver como ela se assemelha, por diminuta, às demais casas. Esse deslocamento é a virtude fugitiva da potência substancial de observar. Daí a importância do fôlego, do caminhar, de pernas grossas que sustentem um corpo de olhos andarilhos e perspectivos. O Pretor Peregrino romano, como julgador caminhante, tinha, ao choque da vista, a multiplicidade da rua. O julgador capaz de caminhar pela internet, poderá ser uma reedição bem-vinda dos julgadores romanos da realeza, depois do fim das lágrimas sobre a lápide deste direito. “Nos processos emancipatórios, o sujeito não se constitui autônomo como uma configuração fechada, precisa de um espaço de relações com o outro. É a partir do outro, reconhecido como diferença, que o sujeito descobre o sentido de sua própria identidade como alteração de sentidos e desejos”, diz Warat. Já foi dito pela poesia de Antonio Machado: caminhante o caminho não existe, o caminho acontece ao caminhar. Necessária, portanto, uma crítica horizontal, uma pedagogia horizontal, uma observação horizontal, um julgamento horizontal. Assim como uma crítica vertical só pode modificar santos, essa raça rara de gente, um julgamento vertical resolve processos e não conflitos, que são sempre da ordem do complexo.  As críticas verticais são o mesmo que estar apenas formalmente apto a julgar: no fim, ambas modificam pouco a realidade que pretendem atingir.


[1] Alexandre Morais da Rosa escreve um livro paradigmático, que inaugura a possibilidade de uma análise subjetiva mas, sobretudo, malandra da teoria da decisão. Ver Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2a ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2014.

  •  é advogado em Santa Catarina, professor universitário e mestre em Direito pela Unisinos-RS.

Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2014, 15:01h


Juiz Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê crime; equivale a Estado de Sítio

 

Juiz Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê crime; equivale a Estado de Sítio

publicado em 13 de julho de 2014 às 19:59

damasceno

Damasceno: “A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro”

por Conceição Lemes

Nessa sexta-feira 11, a 27ª Vara Criminal da cidade do Rio de Janeiro expediu 26 mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores de idade.

A maioria foi detida ontem.  Acusação: formação de quadrilha armada, com pena prevista de até três anos de reclusão.

Em entrevista coletiva nesse sábado, o chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Fernando Veloso, justificou: “Estamos monitorando a ação desse grupo de pessoas desde setembro do ano passado. A prisão delas vai impedir que outros atos de violência ocorram neste domingo”.

Veloso disse que a polícia fluminense tem provas “robustas” e consistentes” de que “essa quadrilha pretendia praticar atos violentos se não hoje, amanhã [domingo]”.

Na mesma coletiva , a delegada Renata Araújo, adjunta da Delegacia de Repressão à Crimes de Informática (DRCI), alegou: “Eles planejavam ataques e se aproveitavam de problemas reais para fazer manifestações onde usavam artefatos para incendiar ônibus, depredar agências bancárias, entre outros”.

“Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões”, denuncia o juiz João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.”

“Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade”, alerta.  “Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.”

“A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’ que investiga o futuro”, critica Damasceno. “Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.”

A propósito. Entre as coisas apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro na residência dos presos, há máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, máscaras de carnaval, computadores, livros de capa vermelha e um revólver.

“O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que é do pai do ativista, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica”, acusa Damasceno.

“A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais dos tempos de ditadura”, vai mais fundo. “Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.”

Segue a íntegra da nossa entrevista com João Batista Damasceno, que é juiz no Rio de Janeiro, doutor em Ciência Política e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Viomundo – Segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, as prisões seriam para impedir que atos de violência ocorressem neste domingo. A lei permite isso?

João Batista Damasceno – A Constituição dispõe que ninguém será considerado culpado sem que haja sentença condenatória transitada em julgado. Neste momento, estamos vivenciando casos de responsabilização antes que a pessoa cometa o fato tido como criminoso.

Não se trata apenas de prisão temporária, visando à apuração do fato cometido.  Nem prisão preventiva, para proteção do processo, ou seja, das testemunhas e garantia da execução penal, caso o acusado seja condenado.

Trata-se de prisão antecipada ao fato, que não se pode afirmar que aconteceria. A militante Elisa [Elisa Quadros, conhecida como Sininho] estava no Rio Grande do Sul e certamente não viria ao Rio de Janeiro para as manifestações de encerramento da Copa.

No Rio de Janeiro, já tivemos um chefe de polícia que se envolveu com o crime organizado internacional, no caso a máfia espanhola, apontada, na época, como responsável pelo tráfico internacional de drogas.

Seria um absurdo defender a prisão do atual chefe de polícia a fim de evitar que pudesse – no futuro – cometer os mesmos crimes que teriam sido cometidos por aquele chefe de polícia no final do século XX.

Perante a lei, o atual chefe de polícia merece a mesma consideração que os demais cidadãos brasileiros. A violação ao direito de uns permite que o direito de outros também seja violado, inclusive do próprio chefe de polícia.

Mas é preciso lembrar que tais prisões foram decretadas pelo poder Judiciário, que tem funcionado como auxiliar da polícia e do governo na violação aos direitos dos cidadãos. Assim, não se espera que funcione como órgão garantidor dos direitos.

Viomundo – Essas prisões são ilegais então?

João Batista Damasceno – Elas foram efetuadas a pedido da polícia, mas por decretação do Judiciário.

Do ponto de vista formal, a polícia fez o que o Judiciário autorizou. Claro que na execução da medida no Rio Grande do Sul os policiais fluminenses não poderiam ter atuado. Eles agiram fora do limite territorial do Estado do Rio de Janeiro. Atuaram com excesso de poder.

O delegado encarregado da diligência gravou vídeo da prisão da militante no Rio Grande do Sul, expondo indevidamente sua imagem, e disse estar em auxílio à polícia gaúcha. Mas vendo o vídeo percebe-se que toda a diligência foi efetuada pela polícia fluminense.

Trata-se de uma polícia, que, desde a condecoração dos homens do Esquadrão da Morte nos anos 60 pelo governado Carlos Lacerda, atua à margem da lei.

Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões.

Em entrevista, o chefe de polícia do Rio de Janeiro disse que tais militantes vinham sendo monitorados desde setembro de 2013 e que as prisões evitariam que participassem de manifestações neste domingo, final da Copa.

Porém, violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.

Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade. Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.

Viomundo – A Justiça determinou a prisão temporária. Por quê?

João Batista Damasceno — A prisão temporária, de discutível constitucionalidade, visa restringir a liberdade de uma pessoa a fim de coletar prova de crime que se tenha cometido.

A prisão temporária é uma prisão para preservar as provas, após a ocorrência de um crime. Trata-se de medida emergencial, por isso se afasta o suposto criminoso da cena do crime para a produção probatória necessária à sua acusação.

No caso presente, os militantes estavam sendo monitorados desde setembro de 2013. Não havia prova a ser coletada emergencialmente.

Fica cada vez mais evidente o reforço do Estado Policial, com exercício arbitrário do poder da polícia. Voltamos ao Brasil da Primeira República, quando a política se fazia com a polícia à frente. O estopim para a Revolução de 30 foi uma ação policial na casa da namorada de João Dantas, adversário do candidato a vice-presidente de Getúlio Vargas, João Pessoa.

revolver

Viomundon — A polícia do Rio apresentou várias coisas que teriam sido apreendidas nas residências presos. Pelas fotos publicadas na mídia, dá pra ver máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, um revólver…

João Batista Damasceno — O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente.  Só que o revólver é do pai desse ativista político, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica, legitimando a atuação da polícia.

A polícia tratou o adolescente como se ele fosse o dono da casa. E diante da demonstração de que seu pai era o detentor de porte legal de arma, lavrou-se um registro de omissão de cautela. É uma forma de justificar a apreensão de uma arma que não poderia ser apreendida.

A polícia buscou dar um aparato legal à apreensão, sob o fundamento de que aquele que tem a posse legal da arma, não a guardou adequadamente, tornando-a passível de apreensão. Mas isto não foi levado ao conhecimento da sociedade.

Viomundo – Pesa o fato de estarmos em ano eleitoral?

João Batista Damasceno  — Com certeza, e a polícia quer mostrar eficiência na intimidação de opositores das políticas públicas lesivas aos interesses do povo.

Curiosamente, essa mesma polícia que prendeu os jovens militantes não se moveu diante do que não foi apurado na CPI do Cachoeira. Tampouco diante do furto das vigas do elevado da Perimetral, no Rio de Janeiro.  Eram vigas com cerca 20 toneladas! Essa mesma polícia não foi capaz de esclarecer a autoria do furto, apesar de do grande volume e notável valor econômico.

Igualmente não foram esclarecidos pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) os crimes cometidos por policiais. E a DRCI é que está atuando contra os militantes presos.

Viomundo – Explique melhor isso.

João Batista Damasceno — Computadores de juízes fluminenses foram invadidos e hackeados e o fato somente se comprovou porque o Ministério Público o esclareceu. A delegada titular de então direcionou a investigação para as vítimas.

No ano passado, crimes contra um magistrado, praticados por policiais pela internet, igualmente terminaram sem qualquer apuração. De nada adiantou a reunião do delegado titular da DRCI no gabinete da então chefe de polícia, Martha Rocha. Nada se apurou. As investigações são seletivas.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes formou-se uma perversa aliança da mídia com a polícia. Já não se denunciam as arbitrariedades policiais como se fazia antes. O fato se agravou com a morte do cinegrafista Santiago de Andrade durante uma manifestação recente.

Não se registrou a morte do Santiago como uma fatalidade; nem que ele trabalhava sem os equipamentos de proteção que lhe deveriam ser fornecidos pela empresa de comunicação que o empregava.

A morte dele foi consequência da irresponsabilidade de militantes, que não desejavam sua morte, mas também da culpa grave do empregador que não lhe forneceu os meios adequados para proteção na cobertura de uma manifestação que se sabia poderia resultar confronto ou conflito, como ocorre no restante do mundo.

A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro. Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.

A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais. Durante a ditadura, a mesma polícia, fazia apreensão de livros pela cor da capa. Naquela época, não era a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, mas o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.

Viomundo  – O que representam essas prisões?

João Batista Damasceno – O apogeu da escalada do Estado Policial. Mas não é coisa que tenha sido formatada apenas pelo atual chefe de polícia. É parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais. A atuação tem sido similar em outros Estados. No Rio de Janeiro e em São Paulo ocorre maior repercussão. Mas esse tipo de atuação se intensificou após reunião dos secretários de Segurança dos estados no Ministério da Justiça.

É óbvio que nem tudo é coisa do governo federal; apenas a matriz. As polícias e o próprio Judiciário funcionam nesses episódios como forças auxiliares. O próprio chefe de polícia desempenha papel deste quilate.

O povo, para certo de tipo de político, só é bonito visto do palanque, para onde vai aplaudir o candidato. Assim, pensava Benedito Valadares, velho político mineiro, que cunhou tal frase.

Anastácio Somoza, ditador nicaraguense derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três segmentos: os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata e os inimigos, a quem destinava chumbo.

As atuais políticas públicas têm o mesmo viés. Mas quem ficou com o ouro foi a FIFA. Aos que não se domesticaram para receber a prata restaram demolições de casas, remoções de suas comunidades, repressão brutal e prisões.


Quadro mental paranoico não pode imperar na solução de casos jurídicos. Por Marco Aurélio Marrafon

 

CONSTITUIÇÃO E PODER

Quadro mental paranoico não pode imperar na solução de casos jurídicos

  • 14 de julho de 2014, 14:21h

Por Marco Aurélio Marrafon

Um dos maiores perigos para quem julga reside no apego à primeira impressão e na construção, a partir dela, de premissas fundantes que condicionam toda a cadeia de produção de sentido no desenvolvimento do processo, valorizando apenas o que confirma a primeira hipótese, encobrindo a realidade e desprezando o conjunto probatório produzido nos autos. Lembrando as aulas do mestre Jacinto Coutinho, isso constitui o chamado “primado da hipótese sobre os fatos”, tão bem diagnosticado pelo processualista italiano Franco Cordero. É o problema do julgamento por induções e presunções, inúmeras vezes denunciado por Lenio Streck, em especial em sua coluna “Senso Incomum” da semana passada, cujo título autoexplicativo é Não havia provas, mas a juíza disse: “testemunhei os fatos”! E cassou o réu!.

Vontade de potência e quadro mental paranoico
Franco Cordero explica que o chamado “primado da hipótese sobre os fatos” revela-se como a situação, típica do sistema processual inquisitório, na qual são considerados e relevados apenas os significantes confirmadores da acusação, desprezando os demais. Nesses casos, forma-se um “quadro mental paranoico” em que praticamente não há espaço para a defesa e o contraditório pouco influi[1].

Isso significa que o sujeito que julga atribui sentido válido apenas às manifestações que confirmam seu entendimento prévio, desprezando provas e evidências em sentido contrário. Imaginemos uma situação típica: ante ao sumiço de uma joia que ficava guardada no criado-mudo do quarto em uma residência, culpa-se a empregada doméstica pelo furto. A reconstituição de fatos que pudessem levar a tal conclusão — que, em geral, é obtida sem provas — dá valor e relevância somente àquilo que confirma a hipótese primeira: Ah, a empregada estava limpando o criado-mudo onde estava a joia no dia anterior ao sumiço: prova cabal da culpa. Levem-na para a delegacia! Não importa se ela limpava aquele quarto a cada dois dias por anos…

Como nos filmes de antigamente: houve um assassinato. Quem é o assassino? O mordomo. E partir daí todas as atitudes desse acusado apenas confirmam as suspeitas. Não há chances de absolvição  o julgamento ocorreu antes do processo.

Esse modus de raciocinar juridicamente revela fortes traços de pensamento metafísico, porque estabelece critérios de verdade (identidade) ou falsidade (diferença) de acordo com a compatibilidade ou não com os parâmetros contidos na premissa fundante em que se crê. Faz-se necessário superar essa maneira maniqueísta de encarar o processo para entender a dimensão e a relevância do contraditório. Daí a importância da crítica ao pensamento metafísico clássico.

Na concepção de Nietzsche, é justamente a possibilidade de criar um mundo-verdade a partir da própria medida humana e seu racionalismo que revela não apenas a insânia dos filósofos, mas principalmente a chamada “vontade de potência” (Der Wille zur Macht) sobre o mundo real, em que todos estão imersos[2].

Em análise ligeira, pode-se dizer que a crença na essência transcendental instaura uma divisão de mundos puramente inventiva, segundo a qual o ideal racional era tido como verdadeiro e o mundo fenomenológico, marcado pela multiplicidade e pela fragmentação, representava a falsidade.

Nessa perspectiva, qualquer manifestação de verdade que se apresente em um único princípio metafísico, tido como síntese de uma essência imutável ou archè que atua como fundamento e ao mesmo tempo critério para a promoção de toda identidade e diferença, possui caráter nitidamente metafórico e encobre a realidade[3]. O mesmo vale para a hipótese primeira que determina “a verdade” no processo judicial impulsionado pelo quadro mental paranoico.

Jurisdictio
Em razão do poder de dizer o direito, do exercício da jurisdictio, os Tribunais transformam-se no locus privilegiado onde uma grande responsabilidade emerge, visto que ali se deve proferir o veredicto, ou seja, o dito verdadeiro, ao sentenciar.

Nessa arte, os magistrados a todo tempo atribuem sentido a diferentes manifestações discursivas até que “aconteça” a decisão fundada no convencimento vinculado e motivado normativamente, bem como baseado no conjunto probatório.

Por isso, como bem anota Resta, os juízes atuam como maître du langage,poética expressão encontrada na obra Pour l’amitiè de Blanchot para traduzir o singular poder constitutivo da linguagem no processo, bem como a constante tentativa do juiz em governá-lo ao dizer o direito e dar a última palavra, pondo fim à controvérsia[4].

A expressão maître du langage pode sugerir também que o juiz traduz cada palavra por meio de seus próprios referenciais linguísticos[5], o que pode significar um grave risco à justa resolução processual, uma vez que a atividade cognitiva humana está sempre sujeita a antecipações de sentido.

A hermenêutica filosófica mostra que só é possível compreender aquilo que, desde antes, possui alguma estrutura mínima de pré-compreensão, o que significa que a antecipação de sentido é condição essencial para a compreensão.

De outro lado, a psicanálise (Freud-Lacan) assinala que, por meio das metáforas e metonímias, manifestações inconscientes promovem giros de sentido na estrutura da linguagem consciente, impossibilitando o controle racional da decisão judicial (Jacinto Coutinho).

Tratarei das metáforas e metonímias em coluna própria, mas desde já destaco que é preciso não descuidar das lições hermenêuticas (Heidegger – Gadamer), mostrando que há importante diferença entre pré-juízos autênticos — logos do mundo compartilhado que sustentam o sentido — com pré-juízos particulares e idiossincráticos. Estes contaminam a decisão, impregnando-a de inadmissível voluntarismo jurídico (Streck), especialmente quando objetificados na forma de premissa fundante do raciocínio judicial, determinando sua conclusão (primado da hipótese sobre os fatos).

Como se tal quadro já não fosse suficientemente grave na seara do Direito Penal, por atingir o próprio direito de defesa, ele tem se alastrado em outras áreas do direito, ainda que de formas diferenciadas.

Especialmente em matéria constitucional os riscos para a democracia são evidentes, já que os julgamentos não devem recair em manifestação de “vontade de potência” sob pena de atribuir ao Judiciário poderes de um novo soberano que decide para além da Constituição, pois isso viola os próprios ideais do constitucionalismo moderno, fundado na ideia de racionalização, limitação e equilíbrio no exercício do poder[6].

Eis, então, a primeira tarefa para o adequado desvelamento dos casos jurídicos: adotar uma atitude constante de suspeição de si, isto é, tornar regra a desconfiança acerca de suas verdades e das antecipações que o próprio sujeito judicante faz do caso, em um trabalho de Sísifo a fim de minimizar a contaminação do resultado com suas concepções morais e idiossincrasias assumidas como verdade.


[1] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p. 51

[2] NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência: parte 2. Trad. Mário D. Ferreira Santos. São Paulo: Scala, [2006?]. p. 251-252.

[3] NIETZSCHE, Friedrich W. Su verità e menzogna in senso extramorale In: _____. Verita e menzogna: A cura di Sossio Giametta. Milano: BUR, 2006. p. 175.

[4] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. 2 ed. Roma-Bari: Laterza, 2006. p. 62.

[5] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno…, p. 63.

[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 51.

 é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.


Marco Civil traz efeitos na apuração criminal, mas pode invadir privacidade, Por Felipe Machado.

 

 

EFEITOS COLATERAIS

Marco Civil traz efeitos na apuração criminal, mas pode invadir privacidade

  • 14 de julho de 2014, 09:23h

Por Felipe Machado

Publicada no Diário Oficial da União em 24 de abril, a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, entrou em vigor no último dia 23 de junho. Apelidada de a Constituição dos Internautas, tal lei deve ser vista com reservas, pois, apesar de ter sido criada para regular uso da Internet no âmbito cível, acaba surtindo efeitos na esfera penal, especialmente na investigação criminal.

Em uma primeira análise, chama a atenção o caráter contraditório do Marco Civil, que, por um lado, mostra-se um avanço, mas, por outro, revela uma temerária possiblidade de invasão da privacidade dos usuários da rede mundial de computadores.

A grande benesse da Lei 12.965/2014 está em seu art. 9º, que protege a neutralidade da rede, garantindo tratamento isonômico aos pacotes de dados (grupos ou sequências de bits ou bytes, com determinada estrutura, que os dispositivos informáticos têm de codificar e descodificar na transferência de informações). Dessa maneira, os responsáveis pelos provedores de acesso não poderão privilegiar alguns serviços de Internet em detrimento de outros. Tal medida impede, por exemplo, que conteúdos de propriedade de determinado grupo econômico trafeguem na rede em velocidade superior à de outros agentes.

Já o ponto controvertido está no art. 15, que tornou obrigatória medida que, até então, nada mais era que uma recomendação do Comitê Gestor da Internet (CGI). Segundo o novo dispositivo legal, os provedores de aplicativos (aqueles que disponibilizam aplicativos ao cliente, como o site de um internet banking ou mesmo uma rede social) deverão armazenar, por seis meses, os registros de acesso de seus usuários (informações como o número do endereço de protocolo de internet, com data, horário e fuso horário do acesso ao aplicativo), lesando, assim, seus direitos fundamentais à privacidade e intimidade (art. 5º, X, da CR).

Mesmo sabendo que essas informações só poderiam ser fornecidas através de uma ordem judicial, não haveria maiores garantias que inibissem a comercialização ou outros usos indevidos de tais dados. Em um país que já sofreu espionagem informática, bem como onde se tem notícias de grampos telefônicos indiscriminados, inclusive contra os chefes dos Poderes da República, é temerária a possibilidade de manutenção de dados dos usuários da rede, o que colocaria em risco a seu anonimato.

Apesar da ofensa à intimidade e privacidade, essa mesma medida auxilia o Estado na investigação de crimes cometidos através de dispositivos informáticos, como delitos de racismo, ameaça, injúria, calúnia, difamação, pedofilia, furto mediante fraude e estelionato. Isso porque, quando alguém acessar um aplicativo de internet (um software que opera na internet), o armazenamento dos dados dos usuários possibilitará a identificação daquele que eventualmente postou determinada mensagem criminosa ou que transferiu conteúdos proibidos como se dá no crime de pedofilia (art. 214-A, do ECA).

Mas, identificado o usuário no mundo virtual, como se pode chegar até ele? Para resolver esta questão, o art. 13 estabelece que o provedor de conexão (o responsável pelo serviço de acesso do usuário à internet) deverá manter a guarda dos registros de conexão (dados como o IP, com data, horário e fuso horário da conexão de acesso), sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de um ano.

Assim, em uma eventual investigação criminal, cruzando-se os registros de acesso a aplicações de internet, armazenados pelo provedor de aplicativos de internet, com os registros de conexão, guardados pelo provedor de acesso, é possível a localização geográfica do ponto de acesso à rede mundial de computadores, a partir do qual se acessou o aplicativo de internet para o cometimento de crimes.

Apesar de ser uma lei bastante recente e que suscitará diversos debates, desde já é possível concluir que ela flexibiliza o anonimato dos usuários da rede mundial de computadores, já que obriga o armazenamento de seus dados pelos provedores de acesso e de conexão. Em sendo assim, uma nova ferramenta se põe à disposição dos órgãos da persecução penal, facilitando sobremaneira a identificação de autores de crimes informáticos.

Felipe Machado é advogado, diretor presidente do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ) e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Professor de Direito Penal e Processo Penal, também é doutorando em Direito pela PUC Minas, mestre em Direito pela UFMG e especialista em Ciências Penais pela EIC/PUC Minas.

Revista Consultor Jurídico, 14 de julho de 2014, 09:23h


Teoria Geral do Processo aplicada ao Processo Penal. Não, obrigado. Por Rômulo de Andrade Moreira

 

BREVE ESBOÇO A RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO[1]

 

Este pequeno artigo trata-se de uma espécie de resumo da minha obra “Crítica à Teoria Geral do Processo”, publicada pela Editora LexMagister, 2014, Porto Alegre/RS. (http://www.multieditoras.com.br/produto.asp?id=1081&site=1).[2]

 

Obviamente que, como todo resumo, não podemos nos aprofundar sobre o tema (como o fizemos no livro acima referido), mas adianto que ele tem como finalidade oferecer uma pequena contribuição para a desconstrução definitiva a respeito da ideia de que existiria uma Teoria Geral do Processo e, como tal, poder-se-ia conceber o Direito Processual como uma só categoria dentro da ciência do Direito Processual. Pretendo, portanto, fazer uma crítica respeitosa, porém contundente, à chamada Teoria Geral do Processo ou, como alguns preferem, à Teoria Unitária do Processo. A razão pela qual me debrucei sobre o tema é que entendo ter o Direito Processual Civil conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

 

Com efeito, esta Teoria Geral é inadmissível exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Por óbvio que conceitos genéricos, tais como os de jurisdição (nada obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários, competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc, servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por exemplo. A natureza jurídica do processo, também. Da mesma forma, a garantia ao duplo grau de jurisdição, e assim por diante… Igualmente em relação à natureza jurídica do processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow), como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), etc., etc.

Porém, evidentemente, que esta afirmação última jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque, ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no Processo Penal: a questão do ônus e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.

 

Sou daqueles que entendem que o Direito Processual Civil tem o seu próprio conteúdo que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, razão pela qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

A Teoria Unitária é inadmissível exatamente porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos: “A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (…) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (…) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (…), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (…) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (…) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (…) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado  em sua concepção e estrutura.[3] (tradução minha).

Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: “Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (…) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (…) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[4]

A propósito, prefaciando o meu primeiro livro, escreveu generosa e exageradamente, Calmon de Passos, adepto ferrenho de uma Teoria Geral do Processo: “Em nenhum momento de minha vida de professor ministrei aulas de Processo Penal, nem jamais publiquei algum artigo versando algum de seus problemas relevantes. (…) Para não ser infiel à verdade, direi que se me faltam credenciais como mestre de Processo Penal, não sou de todo desprovido das virtudes de um bom aluno dessa disciplina. E que bom aluno tenho sido quando presente, e sempre estou, às aulas que Rômulo ministra no Curso de Especialização em Processo que coordeno na UNIFACS! Faço coro com meus colegas, unânimes em louvar a clareza de sua exposição, o rigor lógico a que submete seu pensamento, sua correção terminológica e seu empenho em fugir do “discurso” jurídico inconsequente, que muitas vezes se pretende também eloquente. Esse rigor intelectual de Rômulo no tocante ao que ensina é igual ao rigor ético que se impõe em seu comportamento profissional. É esse mestre e esse homem que se revelam presentes nos trabalhos que compõem este volume de estudos de Processo Penal editado pela Forense. Em todos os artigos estão presentes as marcas da excelência de Rômulo: clareza, correção técnica e erudição sem excesso. E concluo asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que foram ontem seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestres.” (Salvador, 07 de março de 2002). Grifei.

 

[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça na Bahia e Coordenador do Centro de Especialização e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, “Juizados Especiais Criminais”, “Comentários à Lei do Crime Organizado” e “Crítica à Teoria Geral do Processo”, todos estes publicados pela Editora LexMagister, Porto Alegre/RS, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] A ideia foi do meu amigo Alexandre Morais da Rosa, grande processualista penal e verdadeiro Magistrado. Fica aqui o meu agradecimento pela “dica”. Valeu!

[3] Eugenio Florian, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, págs. 20 a 23.

[4] Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 38 e 40.

 

Confira aqui

 


Que fim levou a direita ilustrada? Por Christian Dunker

 

Que fim levou a direita ilustrada?

Por Christian Dunker

Quando entrei na USP em 1984 meus avós ficaram preocupados. Ainda era época do degelo militar e a Psicologia vinha com um traço “róseo” que levantava suspeitas em meu querido avô. Formado da tradição liberal inglesa, voraz leitor do Estadão, ele iniciou uma espécie de profilaxia que consistia em receber-me, às quartas feiras, para uma conversa sobre temas de sua livre escolha: economia, política ou cultura. Minha avó esperava a ocasião com uma generosa torrada sobre a qual repousavam dois ovos pochés, em cima dos quais salpicava-se pimenta, extraída de um daqueles antigos e compridos moedores feitos de madeira. Depois do fausto e antes da partida de xadrez, vinha a chamada oral em torno dos artigos, previamente selecionados na semana anterior: Delfim Neto, Pedreira, Paulo Francis, Simonsen, Joelmir Beting e ao fim o indefectível Bob Fields (Roberto Campos), combinavam-se com artigos mais informativos do The Economist ou das revistas francesas ou alemãs, que minha avó conseguia interpolar na conversa. Lembro particularmente de um luminar da direita americana chamado Rush Limbaugh, que quando ativado era o código para “agora o comunismo vai tremer nas bases” e Cuba deixará de ser o exemplo eterno de superioridade moral em matéria de educação e saúde. Rapidamente descobri que havia alguns caras que “pegavam mais leve” e que havia uma tensão a ser explorada entre meus dois avós, já que ela gostava mesmo era daFolha.

À medida que a esquerda foi entrando, no país e nos meus anos de graduação, as batalhas verbais com meu avô aumentavam em teor de pimenta. Daquela época retive o diagnóstico de que as verdadeiras ideias liberais jamais tinham sido realmente implantadas no Brasil. Não tínhamos instituições fortes, nossa economia era ridiculamente fechada e o espírito de discussão livre, pública e democrática havia sido sequestrado por dois grandes malfeitores: o governo corruptor de adultos e a esquerda corruptora de jovens. A alma do capitalismo é o risco, e as joint ventures públicas ou privadas deviam ser o ponto nevrálgico de um grande sistema baseado em punições e recompensas, praticadas pelas mãos invisíveis de Adam Smith.

Havia ainda outro lado da direita liberal. Sua capacidade de erudição, seu gosto cultivado e seu exercício da ilustração. Independente do sentido aristocrático ou popular deste tipo de virtude, ela não vinha sem alguma humildade, característica daqueles que sabem o tamanho do problema que se está a enfrentar. Talvez seja por isso que os antigos cadernos culturais tinham títulos diminutivos como o Pasquim e o Folhetim, ou que indicavam sua condição acessória como o Suplemento Literário. Hoje passamos para a época dos superlativos como o Mais!, ou a atual Ilustríssima. À esquerda podia-se perdoar a falta de lastro cultural, que em tese seria substituído pela aposta em novas formas, vanguardas ou não, populares se benfazejas. Afinal, cultura implica conservar, cuidar, manter. Por isso a direita tinha a obrigação moral de pagar o imposto por sua própria vocação e conservar os clássicos, louvar as origens e cantar as descendências. Foi assim que a própria relação entre política e cultura tornou-se um tema mais político para a esquerda e mais cultural para a direita.

Fato é que aprendi a respeitar este tipo de pensamento liberal que era realmente uma forma de pensamento, um estilo, que podia ser mais ou menos conservador, mais inglês que francês, mais protestante que católico, mais liberal do que progressista, mais aderido aos fatos do que às interpretações, mais realista do que construtivista. Ser de direita não tornava o sujeito imediatamente desrespeitável, mas um adversário a ser batido. Podia-se refazer a genealogia imaginária deste tipo de liberalismo no pessimismo auto-irônico de Machado de Assis (o nosso Chesterton), na poesia densa de João Cabral, na sobriedade metodológica de Villa Lobos, ou nas tragédias de Nelson Rodrigues (o nosso Swift). Todos eles expressões mais ou menos reativas ao positivismo francês e seu moralismo de ocasião.

Nos anos 1980 a ecologia apareceu como um tema emergente, meio político, meio cultural. Logo foi metabolizado pelos liberais na seguinte máxima: “nada menos ecológico do que uma criança com a barriga vazia”. Para este tipo de pensamento progresso e economia vêm primeiro, justiça e distribuição são uma espécie de consequência natural: “Primeiro vamos fazer o bolo crescer, depois distribuímos suas fatias” – era a lei de Delfim. Para esta narrativa nossos heróis são os capitães de indústria de Mauá a Hermírio de Morais passando por Chatô. Foi também nesta época que o tema do “social” caiu no colo da esquerda, para desespero de meu avô. Como observou outro dia Paulo Arantes, em entrevista a Mario Sergio Conti, no… GloboNews (isso sim teria levado meu velho ao colapso) a identificação entre a esquerda e a defesa de temas sociais é relativamente recente. E esta ideia de um Estado benemérito, sem mexer no “core” da economia, é, no fundo, senão estratégica, um pouco estranha.

Tais “maravilhosas” sínteses facultavam que na hora de escolher entre o sórdido caráter egoísta e hobbesiano ou a alegre idealização de nós mesmos, promovida pela Liga da Justiça formada pelos descendentes de Rousseau e Marx, seria preciso optar sempre pela primeira alternativa.

Gostaria que meu velho avô Colin voltasse para este mundo, apenas para ver ao que se reduziu o pensamento de direita e quiçá dar-me razão, pelo menos uma vez, senão em vida, depois da morte. Talvez ele tenha prenunciado os novos tempos quando em um de seus últimos gestos renunciou à revista Veja dizendo que aquilo tinha virado propaganda de remédio aplicada à política. Quando leio Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino e os chamados neoconservadores eu me pergunto: o que aconteceu com a tênue, mas boa, tradição da direita ilustrada brasileira? Que fim levou o pessoal que realmente acreditava nas ideias de Milton Friedman, que queria discutir Ayn Rand ou que, no geral, tinha teses para interpretar o Brasil?

Gostaria de dizer para meu velho avô: olha aí, aquilo deu nisso. Mas não é verdade. Há uma espécie de erro de continuidade neste filme onde, de repente, aparece um pessoal dançando uma espécie de “Lepo Lepo” sanguinário contra o PT. Uma espécie de macarthismo retórico contra tudo o que cheire, pareça ou suporte a projeção vermelha. É uma turma que surge do nada, fantasiada de Capitão Nascimento, dizendo coisas que nem o Maluf do “estupra, mas não mata” seria capaz de dizer. Há uma fratura de gerações na direita, que de repente deu a luz a espécimes mutantes capazes de argumentar que o “2014” escrito em vermelho no logotipo da Copa do Mundo só pode ser uma propaganda subliminar da esquerda. Se o poder perdeu a vergonha, a reflexão de direita sobre o poder transformou a crítica em pichação. Esquecendo sua nobre origem liberal, não se pode reconhecer nos neoconservadores nem mesmo os bibelôs da história: seus heróis, ideias ou compromissos. Basta entrar no Bonde do “Ai se eu te pego” para perseguir, criar e vender inimigos, qual romanos vendendo bárbaros aprisionados como escravos.

Ninguém viu, ninguém sabe como chegaram esses sujeitos a posições de reputada representação em grandes diários, revistas, canais de televisão ou blogs correlatos. Passagem pelo governo, partido ou qualquer outro órgão politicamente formativo: nenhuma. Experiência com movimentos sociais, terceiro setor ou com grandes corporações: desprezível. Reputação acadêmica da moçada: zero. Aliás, para esta turma, a academia deveria ser extinta, privatizada, vendida como ferro velho, ou comprimida e coada antes da floculação tendo em vista a extração vendável de pigmento vermelhiforme.

Da antiga indignação liberal, ainda que com a típica arrogância dos vencedores, que não obstante entendiam-se como guardiões da virtude, não sobrou mais que a raiva dos impotentes. Leia-se: a cólera esbravejante dos que acreditam que possuem mais poder do que realmente têm. Antes a velha direita cheirava a dinheiro e gostava de dizer-se acima de esquerdas ou direitas, pois era tão somente contrária à vulgaridade. Ao que a velha esquerda respondia com “o meu partido é um coração partido”. Hoje, denunciam, reagem e latem como caçadores baratos de celebridade. E o sentimento basal é de vergonha alheia.Com uma direita destas quem precisa de esquerda?

Esta direita está mais para os ovos poché de minha avó do que para o Rush Limbaugh de meu avô. São quadrados, ásperos e chatos como uma torrada queimada. Os ovos são moles e espalham tudo com qualquer furinho à toa. Mas o pior é que ainda não entenderam que não é para sentar em cima do moedor de pimenta.

http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/02/que-fim-levou-a-direita-ilustrada/


CONJUR – Um novo “caso do véu” no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (parte 2), por Otavio Luiz Rodrigues Junior

 

DIREITO COMPARADO

Um novo “caso do véu” no Tribunal Europeu de Direitos Humanos (parte 2)

09 de julho de 2014, 19:18h

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

1. Introdução
Os antecedentes da decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH – sobre a Lei 2010-1192, da República Francesa, sobre o uso de vestes que encubram o rosto, foram examinados na coluna da semana anterior. Esta semana, retoma-se o estudo desse importante precedente europeu, que lança novas luzes sobre os limites da liberdade religiosa e da autodeterminação em uma sociedade laica.

O julgamento da Reclamação 43835/11, formulada por S.A.S em face da República Francesa, ocorreu no dia 1o de julho de 2014, sob a presidência do juiz Dean Spielmann. Votaram 17 juízes, tendo 15 deles acompanhado o relator, com a dissidência parcial da alemã Anna Nußberger e da sueca Helena Jäderblom, no que se refere à alegação de ofensa aos artigos 8o e 9o da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Nas seções seguintes, ver-se-ão as principais razões de decidir desse histórico julgamento.[1]

2. As alegações de mérito das partes e dos terceiros intervenientes
A reclamante alegou que nasceu no Paquistão, em uma família sunita, respeitadora de suas tradições religiosas e culturais, na qual é comum o uso do véu que encobre o rosto inteiro em público. Segundo ela a proibição legal do uso do véu é uma abordagem simplista da questão. Haveria inúmeras mulheres que tomaram a decisão individual de usar a veste, sem qualquer influência externa, muito menos para agradar a familiares ou para se submeter a padrões de comportamento impostos por pessoas chauvinistas ou machistas.

Em suas razões, também se afirmou que uma “sociedade verdadeiramente livre” é aquela que consegue “acomodar uma grande variedade de crenças, gostos, atividades, costumes e códigos de conduta”, sem que o Estado deva referendar ou validar determinada expressão religiosa. Ainda que se possam considerar válidas as restrições impostas pela lei francesa, suas sanções seriam desproporcionais. Os objetivos da lei poderiam ser alcançados por outras espécies de restrições, como criar controles de identidade em áreas de risco.

A reclamante ainda defendeu que a atitude do Governo francês mostrou-se paternalista e terminará por punir as mulheres, quando estas deveriam ser protegidas em face da pressão patriarcal.

A proibição instituída pela Lei 2010-1192 teria sido invasiva de sua esfera privada, em claro desrespeito ao art. 8o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No que se refere ao artigo 9o dessa convenção, a lei francesa ser-lhe-ia contrária porque essa modalidade de interferência na vida das pessoas é desnecessária em uma sociedade democrática.

Por fim, quanto ao artigo 14 da convenção europeia, a autora defendeu que a lei francesa seria discriminatória quanto ao gênero, à religião e à origem étnica das pessoas atingidas por seus efeitos.

A manifestação do Governo da República Francesa, em favor da lei, pode ser assim resumida:

a) A lei efetivamente estabelece uma limitação às liberdades individuais, mas ela se dá em um contexto que a justifica, pois é algo que se faz necessário em uma sociedade democrática, cujos objetivos devem ser protegidos.

b) O primeiro dos objetivos democráticos alcançados com a lei é a preservação da segurança pública. A lei permite a ampla identificação dos indivíduos. O segundo objetivo é a proteção dos direitos e liberdades de terceiros, com o estabelecimento de requisitos mínimos para uma vida em sociedade, com a possibilidade de afirmação do caráter único de cada pessoa e com possibilidade de uma coexistência social. O terceiro objetivo estaria na proteção à igualdade entre homens e mulheres. E, o quarto, a proteção à dignidade humana.

c) A lei foi aprovada pela quase unanimidade das casas legislativas francesas, além de ter sido examinada por seus tribunais e pelo Conselho Constitucional, o que demonstra o cuidado com sua elaboração e seu caráter proporcional e democrático.

O Governo do Reino da Bélgica participou como terceiro interveniente, especialmente em razão de haver aprovado uma lei semelhante à francesa, que entrou em vigor em 23 de julho de 2011. A norma belga foi examinada por seu órgão de controle de constitucionalidade, o qual a considerou como compatível com os respectivos textos constitucionais.

Como terceiras intervenientes, as organizações não governamentais Anistia Internacional, Artigo 19, Centro de Direitos Humanos da Universidade Ghent, Liberdade, Iniciativa por uma Sociedade Aberta e Justa defenderam a posição da reclamante, sob diversos fundamentos.

3. As razões de decidir do tribunal europeu[2]
Para o TEDH, a autodeterminação, em locais públicos ou privados, é um desdobramento da personalidade e, como tal, se conecta à noção de vida privada. Essa autodeterminação revela-se em atos como o corte de cabelo ou a escolha da roupa, conforme precedentes, e uma medida estatal que interfira nessas escolhas, em princípio, é uma forma de ingerência na vida privada, na acepção que lhe é dada pelo artigo 8o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Quando essa decisão individual se liga a preceitos religiosos, entra em causa também o artigo 9o da convenção. O problema é saber se, em ambos os casos, houve: (a) uma interferência ou uma ingerênciaestatal na vida dos indivíduos; (b) uma ação prescrita em lei; (c) um objetivo legítimo; (d) uma medida necessária em uma sociedade democrática.

A adequada interpretação do artigo 9o da convenção é a que prestigia a liberdade de pensamento, de consciência e de religião como “fundamentos de uma ‘sociedade democrática’, no sentido dado pela Convenção”. A dimensão religiosa dessa liberdade é um dos elementos mais importantes na composição da identidade dos fiéis e em sua “concepção de vida”. No entanto, ela é igualmente “um bem precioso para os ateus, agnósticos, céticos e indiferentes”. Ocorre que, “nas sociedades democráticas, nas quais várias religiões coexistem no seio de uma mesma população, pode ser necessário estabelecer limites à liberdade de manifestar a própria religião ou crença, a fim de conciliar os interesses dos vários grupos e garantir que as crenças de todos sejam respeitados”.

Na visão do TEDH, ao Estado cabe a função de “organizador neutro e imparcial do exercício de várias religiões”, a qual se exerce em prol de valores como “ a ordem pública, a harmonia religiosa e da tolerância em uma sociedade democrática”. Se os interesses individuais devem, em algumas situações, sujeitar-se aos de um grupo, isso não significa, de modo simplista, que a maioria deve impor sua visão de mundo às minorias. Esse convívio é difícil e só pode ser alcançado com base no diálogo e em “um espírito de compromisso que implica, necessariamente, várias concessões por parte de indivíduos ou grupos de indivíduos”.

Nessas situações, a autoridades nacionais são legitimadas democraticamente, de modo direto, para resolver esses conflitos. Elas estão em condições mais privilegiadas do que um tribunal internacional “para avaliar as necessidades e condições locais”.

Para além dessas restrições, o TEDH tomou posição em diversos problemas envolvendo a liberdade religiosa, ao estilo dos seguintes: a) proibição de uso de símbolos religiosos em escolas públicas, impostas a docentes e agentes administrativos (Kurtulmuş contra Turquia (dezembro), n. 65500/01, TEDH 2006-II); b) obrigação de retirar a roupa de conotação religiosa, no âmbito de uma inspeção de segurança (Phull contra França (dezembro), n. 35753/03, TEDH 2005-I; El Morsli contra França (dezembro), n. 15585/06, 4 de março de 2008); c) obrigação de aparecer com a cabeça descoberta em fotos para uso em documentos oficiais (Mann Singh contra França (dezembro), n. 24479/07, 11 de Junho de 2007). Em todas essas hipóteses, o Tribunal não identificou violação ao artigo 9o.

Após citar outros julgados do próprio tribunal, o TEDH passou a aplicar ao caso da lei francesa os fundamentos já resumidos.

Em síntese, entendeu o TEDH que:

a) O tribunal limitou sua apreciação da lei francesa criou uma interferência necessária em uma sociedade democrática, que destina a preservar a segurança pública e a proteger os direitos e as liberdades de terceiros.

b) Sobre o quesito da segurança pública, o TEDH entendeu que um Estado tem condições de discernir o que é essencial para que ele possa identificar as pessoas e evitar o perigo à vida e ao patrimônio de terceiros. Nesse caso, não se faria necessária uma lei como a francesa para autorizar ao Governo e seus agentes exigir a retirada de véu para assegurar a segurança pública. O alcance da lei é maior do que essa necessidade específica e ela não pode servir de fundamento de per si para se admitir a validez da norma.

b) Quanto à garantia dos requisitos mínimos para uma vida em sociedade, o que se integra à “proteção dos direitos e liberdades de terceiros”, a lei francesa deixou evidente, em sua exposição de motivos, que esse foi um valor que dá fundamento à norma. Ao juízo do tribunal, os Estados têm poderes para estabelecer “as condições nas quais os indivíduos podem viver juntos em sua diversidade”. O TEDH, por conseguinte, “considera que a proibição impugnada pode ser considerada justificada”, em princípio, desde voltada exclusivamente para assegurar a vida social em conjunto.

c) Se a restrição criada pela lei francesa encontra fundamento na preservação da vida social e do convívio das pessoas nesse âmbito, é o caso de saber se ela possui o atributo da proporcionalidade.

d) O TEDH reconheceu que há um número relativamente pequeno de mulheres nos territórios franceses (cerca de 1900, no final do ano de 2009), se comparado ao total de 65 milhões de franceses e ao número de islâmicos que vivem em França. Ademais, a proibição tem, de modo induvidoso, um impacto negativo sobre a situação de mulheres que, como a reclamante, usam as vestes que encobrem o rosto por sua vontade e em respeito a suas crenças religiosas. É ainda de se admitir que essas mulheres podem interpretar a restrição legal francesa como “uma uma ameaça à sua identidade”.

e) O tribunal europeu não desconsidera existir uma reação significativa contra a lei francesa por parte de organizações governamentais e não governamentais, internas e estrangeiras.

f) Não é desconhecido pelo TEDH que os trabalhos legislativos da lei francesa podem ter irritado a comunidade islâmica, mesmo em face de alguns de seus integrantes que são contrários ao uso do véu. Quando um Estado nacional conduz seu processo legislativo nesses termos, corre-se o risco de se acentuar visões islamofóbicas e de se impedir a integração desse grupo na comunidade francesa.

g) A despeito dessas objeções e da circunstância de que o âmbito de incidência espacial da lei (locais de acesso ao público, com exceção das áreas destinadas ao culto religioso) é muito amplo, “a Lei de 11 de Outubro 2010 não ofende a liberdade de se usar em público qualquer vestuário ou item de vestuário – com ou sem conotação religiosa – que não tem a finalidade de ocultar o rosto”. Dessa maneira, o TEDH está consciente de que, apesar de a lei ter efeitos preponderantes sobre as mulheres islâmicas, a restrição legal não tem caráter preeminentemente religioso.

h) A questão de se ter criminalizado a conduta do uso do véu é importante, pois “aumenta o impacto da medida sobre os interessados”. Ser réu em um processo-crime por esconder o rosto em público é algo “traumatizante para as mulheres que optaram por usar o véu” por causa de suas convicções religiosas”. Entretanto, “deve-se ter em conta que as sanções previstas pelos autores da Lei estão entre as mais leves que poderiam ser previstas”.

i) A proibição da lei francesa, de certo modo, teve a consequência de restringir o pluralismo. Tal efeito, porém, foi justificado pelo Governo francês como uma forma legítima de se oferecer uma resposta a uma prática considerada “incompatível, na sociedade francesa, com as regras básicas de comunicação social e, mais amplamente os ditames da “convivência”. A República Francesa, ao editar a lei, buscou proteger um princípio que, a seu entender, “é essencial para a expressão do pluralismo, não só, mas também de tolerância e abertura de espírito, sem os quais não há sociedade democrática”. Em síntese, o TEDH definiu que a restrição de direitos contida na lei francesa é “uma escolha da sociedade”.

j) Neste julgamento, o TEDH assinalou que deve conter o âmbito de sua análise da “conformidade” da lei francesa com a Convenção Europeia, uma vez que poderá interferir no equilíbrio encontrado, em um processo democrático, pela sociedade de França para resolver um problema interno tão sensível. A lei francesa foi elaborada dentro de uma legítima “margem de apreciação”.

k) Diferentemente do que alegado pelas organizações não governamentais, o TEDH acentuou que não há unanimidade na Europa quanto ao uso público das vestes que encobrem o rosto. França e Bélgica, de fato, estão em posição minoritária, pois nenhum outro Estado europeu adotou legislação com esse teor. Mas, há significativo debate sobre o tema nos meios jurídicos e sociais europeus, o que denota a ausência de uniformidade interna quanto ao problema.

Em conclusão o TEDH definiu que a proibição legal francesa deve ser entendida como “necessária em uma sociedade democrática”, o que torna a lei compatível com os artigos 8 º e 9o da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Além disso, não houve violação dos artigos 10 e 14 dessa convenção.


[1] A resenha da decisão está baseada em seu conteúdo integral, disponível neste link. Acesso em 7/7/2014.

[2] O texto integrante desta seção corresponde a paráfrases, transcrições parciais e resenhas do conteúdo original da decisão. Considerando-se a natureza deste escrito (uma coluna e não um artigo científico), deixa-se de fazer a notação em cada frase, paráfrase e resumo do texto original. O leitor é advertido da ausência de originalidade da maior parte do texto desta seção, cujo objetivo é precisamente dar-lhe uma visão geral da decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

 


CONJUR – EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas, por João Ozorio de Melo

 

FIDELIDADE ÀS PROVAS

EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas

08 de julho de 2014, 16:44h

Por João Ozorio de Melo

A mentalidade dos promotores americanos está mudando, progressivamente. O esforço sistemático para condenar a qualquer custo todos os réus que caiam na malha da Promotoria e obter a pena mais alta possível para eles vem sendo substituído, aos poucos, por um esforço coordenado para buscar a verdade e promover a justiça, apenas. A coordenação desse esforço é feita por um órgão de controle interno e externo, criado em diversas unidades do Ministério Público do país. Em algumas jurisdições são chamados de Programa de Integridade da Condenação. Em outras, de Unidade de Integridade da Condenação.

Há razões nobres e, de certa forma, vergonhosas, para isso. As vergonhosas dispararam o alarme. Por exemplo, um estudo recente do Centro para Integridade Pública, chamado “Erro Nocivo: Investigando Promotores Locais nos EUA”, examinou processos criminais em 2.341 jurisdições e encontrou inúmeros casos de má conduta de promotores, que quebraram ou manipularam as regras para obter condenações.

O estudo relatou mais de 2 mil casos em que juízes de 1º Grau ou de tribunais de recursos extinguiram a ação, anularam condenações ou reduziram sentenças, citando como causa a má conduta de promotores.

A Promotoria do Distrito de Manhattan, em Nova York, que lidera o movimento pelo porte de seu Programa de Integridade da Condenação, declara em seu website que o objetivo é “buscar justiça em todos os casos que chegam à Promotoria e rever erros passados”. E explica a razão: “Através dos anos e em todo o país, homens e mulheres inocentes têm sido condenados por crimes que não cometeram. Isso não apenas rouba a liberdade da pessoa inocente, como deixa nas ruas um criminoso, livre para cometer mais crimes”.

website da Unidade de Integridade da Condenação do Condado de Cuyahoga, em Ohio, declara na abertura do texto: “Todos os promotores querem condenar os culpados, não os inocentes. Porém, embora os processos de julgamento e de recursos contenham salvaguardas para todos os acusados de crime, reconhecemos que o sistema de Justiça criminal é uma instituição humana e, como tal, não pode ser perfeito”. Por isso, a Promotoria local criou seu próprio sistema de controle interno e externo.

O programa de Manhattan é liderado pelo promotor Cyrus Vince, um ex-advogado criminalista — um caso raro de advogado criminalista que se converte para a Promotoria, porque o inverso é bastante comum. Alguns promotores que não gostam do programa, dizem que Vince é um advogado criminalista que se travestiu de promotor para criar despesas desnecessárias para o Ministério Público.

Porém, a ex-promotora, ex-juíza e professora da Escola de Direito da Universidade de Washington, em Seattle, Maureen Howard, saiu em sua defesa. Ela declarou ao Huffington Post que “se foi necessário um advogado criminalista se tornar promotor para resgatar os ideais do Ministério Público, ele é muito bem-vindo — e já chegou tarde”.

Para a ex-promotora, Vince e a Promotoria de Manhattan entendem que a função dos membros do Ministério Público é a de promotor de Justiça, não promotor de condenações. Em outras palavras, ela disse, eles estão recuperando o que as diretrizes éticas da classe professam: um membro do Ministério Público é um “ministro da Justiça” — uma espécie de sacerdócio.

Segundo Maureen Howard, os papéis do promotor e do advogado de defesa não são simétricos. A obrigação do advogado de defesa é o de defender seu cliente contra possíveis abusos do Estado, durante o curso do processo. A do promotor é bem diferente.

As proteções constitucionais garantidas aos réus, tais como privilégio contra a autoincriminação, a presunção de inocência, o rigoroso padrão da culpabilidade além da dúvida razoável, a exigência de veredicto unânime do júri (no sistema dos EUA, obviamente), existem para contrabalançar o poder muito maior do Estado sobre o indivíduo, ela diz.

O promotor também tem o dever de buscar provas que podem, potencialmente, prejudicar o seu caso, bem como o de exibir provas exculpatórias para a defesa, voluntariamente e sem pedido, enquanto isso não é um dever da defesa, diz a ex-promotora.

A revelação de prova exculpatória pela acusação à defesa é uma decorrência do sistema americano de “discovery”, um processo em que as duas partes “trocam figurinhas” — isto é, revelam os fatos, as provas, os testemunhos e qualquer outro elemento que possa esclarecer o caso, antes do julgamento. O resultado, muitas vezes, é que não há julgamento, porque a acusação e a defesa fazem um acordo.

A descoberta, a qualquer momento, de que a Promotoria escondeu provas exculpatórias que mudariam o rumo do julgamento enfurece os juízes, muitas vezes, que reprimem duramente o promotor e o faz cair em desgraça até entre os colegas.

Condenações indevidas
Na última semana, a juíza Lynda Van Davis, de Nova Orleans, anulou a condenação à pena de morte de Michael Anderson, de 23 anos, pelo assassinato de cinco pessoas, depois da descoberta de que o promotor escondeu duas peças essenciais de prova.

Essa anulação de julgamento eleva as preocupações da comunidade jurídica do país com o sistema judicial de Nova Orleans, diz Maureen Howard. Ela conta que um estudo recente do advogado Bidish Sarma, da Universidade Southern de Louisiana, revelou que mais condenados à morte na cidade foram libertados do que de executados, devido a comprovações posteriores de condenações erradas.

Mas os promotores não os únicos responsáveis por “condenações erradas”. O Projeto Inocência, que libertou recentemente 317 presos inocentes, alguns deles no corredor da morte, atribui as condenações erradas a, principalmente, seis causas: identificação errada do réu por testemunhas, provas forenses ruins ou mal elaboradas, confissões falsas conseguidas pela Polícia, má conduta de promotores, má-fé de informantes ou denunciantes e serviços ineptos de alguns advogados.

Estudos realizados indicam que as formas mais comuns de má conduta de policiais são os seguintes: sugerir os fatos do crime a um inocente durante longos interrogatórios para que façam uma confissão coerente, coagir confissões falsas, mentir ou iludir os jurados sobre suas observações, deixar de apresentar aos promotores provas exculpatórias, oferecer incentivos para garantir provas não confiáveis de informantes.

As formas mais comuns de má conduta de promotores, segundo esses estudos, são: esconder provas exculpatórias da defesa, manipular, manejar ou destruir provas deliberadamente, permitir a participação de testemunhas sabidamente não confiáveis no julgamento, pressionar testemunhas da defesa a não testemunhar, usar provas forenses fraudulentas, apresentar argumentos enganosos que elevam o valor probatório de testemunhas.

Isso tudo é uma coisa que deve ficar no passado, como declaram as jurisdições da Promotoria americana que criaram as unidades em defesa da integridade da condenação, que estão surgindo uma após a outra em todo o país. Essas unidades têm duas frentes de trabalho principais: uma, impedir que esses problemas voltem a ocorrer daqui para a frente, criando mecanismos de controle para assegurar a correção; outra, aceitar requerimentos de inocentes presos, de seus familiares e advogados, para que voltem a investigar o caso e possam corrigir erros em condenações passadas.

Se a unidade comprovar uma condenação errada, a própria Promotoria tomará a iniciativa de pedir ao juiz a anulação da sentença condenatória.

Os prerrequisitos para uma unidade reexaminar o caso variam um pouco de uma jurisdição para outra, mas incluem, em geral: 1) a condenação deve ter ocorrido dentro da jurisdição; 2) o condenado deve estar vivo; 3) o pedido deve se referir a um caso verdadeiro de inocência – pedidos frívolos e casos de erro processual apenas são descartados; 4) devem existir provas novas e verossímeis da inocência e a promotoria deve ser informada sobre como pode acessar essas provas; 5) o condenado deve renunciar a suas salvaguardas e privilégios processuais, concordar em cooperar com a unidade e em fornecer informações completas à unidade em todas as inquirições – essa última leva alguns advogados a torcer o nariz.

O modelo criado pela Promotoria de Manhattan, seguido pela maioria dos demais programas de outras jurisdições, tem um Comitê da Integridade da Condenação, o chefe do Comitê e um Painel Consultor de Política de Integridade da Condenação.

O comitê é um órgão interno, formado por dez membros graduados da Promotoria, com a atribuição de rever as práticas e políticas relativas ao treinamento dos promotores (novos e veteranos), avaliação de casos, investigação e obrigações de divulgação [de provas e fatos], com foco em possíveis erros, tais como identificações falsas por testemunhas e confissões falsas. O chefe coordena o trabalho do comitê e lidera todas as investigações de casos que apresentam uma reclamação significativa de condenação errada.

O painel consultor é um órgão externo, formado por especialistas respeitados em justiça criminal, incluindo juristas e ex-promotores, com a atribuição de assessorar o comitê e orientá-lo sobre melhores práticas e questões em desenvolvimento na área de condenações erradas.

Para encontrar sites desses programas na Internet, basta pesquisar nos mecanismos de busca as palavras “Conviction Integrity Program” ou “Conviction Integrity Unit”.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 08 de julho de 2014, 16:44h