Doutor em História – UFRGS
Arquivo do mês: julho 2014
Quadro mental paranoico não pode imperar na solução de casos jurídicos. Por Marco Aurélio Marrafon
CONSTITUIÇÃO E PODER
Quadro mental paranoico não pode imperar na solução de casos jurídicos
- 14 de julho de 2014, 14:21h
Um dos maiores perigos para quem julga reside no apego à primeira impressão e na construção, a partir dela, de premissas fundantes que condicionam toda a cadeia de produção de sentido no desenvolvimento do processo, valorizando apenas o que confirma a primeira hipótese, encobrindo a realidade e desprezando o conjunto probatório produzido nos autos. Lembrando as aulas do mestre Jacinto Coutinho, isso constitui o chamado “primado da hipótese sobre os fatos”, tão bem diagnosticado pelo processualista italiano Franco Cordero. É o problema do julgamento por induções e presunções, inúmeras vezes denunciado por Lenio Streck, em especial em sua coluna “Senso Incomum” da semana passada, cujo título autoexplicativo é Não havia provas, mas a juíza disse: “testemunhei os fatos”! E cassou o réu!.
Vontade de potência e quadro mental paranoico
Franco Cordero explica que o chamado “primado da hipótese sobre os fatos” revela-se como a situação, típica do sistema processual inquisitório, na qual são considerados e relevados apenas os significantes confirmadores da acusação, desprezando os demais. Nesses casos, forma-se um “quadro mental paranoico” em que praticamente não há espaço para a defesa e o contraditório pouco influi[1].
Isso significa que o sujeito que julga atribui sentido válido apenas às manifestações que confirmam seu entendimento prévio, desprezando provas e evidências em sentido contrário. Imaginemos uma situação típica: ante ao sumiço de uma joia que ficava guardada no criado-mudo do quarto em uma residência, culpa-se a empregada doméstica pelo furto. A reconstituição de fatos que pudessem levar a tal conclusão — que, em geral, é obtida sem provas — dá valor e relevância somente àquilo que confirma a hipótese primeira: Ah, a empregada estava limpando o criado-mudo onde estava a joia no dia anterior ao sumiço: prova cabal da culpa. Levem-na para a delegacia! Não importa se ela limpava aquele quarto a cada dois dias por anos…
Como nos filmes de antigamente: houve um assassinato. Quem é o assassino? O mordomo. E partir daí todas as atitudes desse acusado apenas confirmam as suspeitas. Não há chances de absolvição — o julgamento ocorreu antes do processo.
Esse modus de raciocinar juridicamente revela fortes traços de pensamento metafísico, porque estabelece critérios de verdade (identidade) ou falsidade (diferença) de acordo com a compatibilidade ou não com os parâmetros contidos na premissa fundante em que se crê. Faz-se necessário superar essa maneira maniqueísta de encarar o processo para entender a dimensão e a relevância do contraditório. Daí a importância da crítica ao pensamento metafísico clássico.
Na concepção de Nietzsche, é justamente a possibilidade de criar um mundo-verdade a partir da própria medida humana e seu racionalismo que revela não apenas a insânia dos filósofos, mas principalmente a chamada “vontade de potência” (Der Wille zur Macht) sobre o mundo real, em que todos estão imersos[2].
Em análise ligeira, pode-se dizer que a crença na essência transcendental instaura uma divisão de mundos puramente inventiva, segundo a qual o ideal racional era tido como verdadeiro e o mundo fenomenológico, marcado pela multiplicidade e pela fragmentação, representava a falsidade.
Nessa perspectiva, qualquer manifestação de verdade que se apresente em um único princípio metafísico, tido como síntese de uma essência imutável ou archè que atua como fundamento e ao mesmo tempo critério para a promoção de toda identidade e diferença, possui caráter nitidamente metafórico e encobre a realidade[3]. O mesmo vale para a hipótese primeira que determina “a verdade” no processo judicial impulsionado pelo quadro mental paranoico.
Jurisdictio
Em razão do poder de dizer o direito, do exercício da jurisdictio, os Tribunais transformam-se no locus privilegiado onde uma grande responsabilidade emerge, visto que ali se deve proferir o veredicto, ou seja, o dito verdadeiro, ao sentenciar.
Nessa arte, os magistrados a todo tempo atribuem sentido a diferentes manifestações discursivas até que “aconteça” a decisão fundada no convencimento vinculado e motivado normativamente, bem como baseado no conjunto probatório.
Por isso, como bem anota Resta, os juízes atuam como maître du langage,poética expressão encontrada na obra Pour l’amitiè de Blanchot para traduzir o singular poder constitutivo da linguagem no processo, bem como a constante tentativa do juiz em governá-lo ao dizer o direito e dar a última palavra, pondo fim à controvérsia[4].
A expressão maître du langage pode sugerir também que o juiz traduz cada palavra por meio de seus próprios referenciais linguísticos[5], o que pode significar um grave risco à justa resolução processual, uma vez que a atividade cognitiva humana está sempre sujeita a antecipações de sentido.
A hermenêutica filosófica mostra que só é possível compreender aquilo que, desde antes, possui alguma estrutura mínima de pré-compreensão, o que significa que a antecipação de sentido é condição essencial para a compreensão.
De outro lado, a psicanálise (Freud-Lacan) assinala que, por meio das metáforas e metonímias, manifestações inconscientes promovem giros de sentido na estrutura da linguagem consciente, impossibilitando o controle racional da decisão judicial (Jacinto Coutinho).
Tratarei das metáforas e metonímias em coluna própria, mas desde já destaco que é preciso não descuidar das lições hermenêuticas (Heidegger – Gadamer), mostrando que há importante diferença entre pré-juízos autênticos — logos do mundo compartilhado que sustentam o sentido — com pré-juízos particulares e idiossincráticos. Estes contaminam a decisão, impregnando-a de inadmissível voluntarismo jurídico (Streck), especialmente quando objetificados na forma de premissa fundante do raciocínio judicial, determinando sua conclusão (primado da hipótese sobre os fatos).
Como se tal quadro já não fosse suficientemente grave na seara do Direito Penal, por atingir o próprio direito de defesa, ele tem se alastrado em outras áreas do direito, ainda que de formas diferenciadas.
Especialmente em matéria constitucional os riscos para a democracia são evidentes, já que os julgamentos não devem recair em manifestação de “vontade de potência” sob pena de atribuir ao Judiciário poderes de um novo soberano que decide para além da Constituição, pois isso viola os próprios ideais do constitucionalismo moderno, fundado na ideia de racionalização, limitação e equilíbrio no exercício do poder[6].
Eis, então, a primeira tarefa para o adequado desvelamento dos casos jurídicos: adotar uma atitude constante de suspeição de si, isto é, tornar regra a desconfiança acerca de suas verdades e das antecipações que o próprio sujeito judicante faz do caso, em um trabalho de Sísifo a fim de minimizar a contaminação do resultado com suas concepções morais e idiossincrasias assumidas como verdade.
[1] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p. 51
[2] NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência: parte 2. Trad. Mário D. Ferreira Santos. São Paulo: Scala, [2006?]. p. 251-252.
[3] NIETZSCHE, Friedrich W. Su verità e menzogna in senso extramorale. In: _____. Verita e menzogna: A cura di Sossio Giametta. Milano: BUR, 2006. p. 175.
[4] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. 2 ed. Roma-Bari: Laterza, 2006. p. 62.
[5] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno…, p. 63.
[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 51.
Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.
Teoria Geral do Processo aplicada ao Processo Penal. Não, obrigado. Por Rômulo de Andrade Moreira
BREVE ESBOÇO A RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO[1]
Este pequeno artigo trata-se de uma espécie de resumo da minha obra “Crítica à Teoria Geral do Processo”, publicada pela Editora LexMagister, 2014, Porto Alegre/RS. (http://www.multieditoras.com.br/produto.asp?id=1081&site=1).[2]
Obviamente que, como todo resumo, não podemos nos aprofundar sobre o tema (como o fizemos no livro acima referido), mas adianto que ele tem como finalidade oferecer uma pequena contribuição para a desconstrução definitiva a respeito da ideia de que existiria uma Teoria Geral do Processo e, como tal, poder-se-ia conceber o Direito Processual como uma só categoria dentro da ciência do Direito Processual. Pretendo, portanto, fazer uma crítica respeitosa, porém contundente, à chamada Teoria Geral do Processo ou, como alguns preferem, à Teoria Unitária do Processo. A razão pela qual me debrucei sobre o tema é que entendo ter o Direito Processual Civil conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.
Com efeito, esta Teoria Geral é inadmissível exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Por óbvio que conceitos genéricos, tais como os de jurisdição (nada obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários, competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc, servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por exemplo. A natureza jurídica do processo, também. Da mesma forma, a garantia ao duplo grau de jurisdição, e assim por diante… Igualmente em relação à natureza jurídica do processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow), como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), etc., etc.
Porém, evidentemente, que esta afirmação última jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque, ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no Processo Penal: a questão do ônus e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.
Sou daqueles que entendem que o Direito Processual Civil tem o seu próprio conteúdo que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, razão pela qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.
A Teoria Unitária é inadmissível exatamente porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos: “A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (…) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (…) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (…), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (…) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (…) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (…) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado em sua concepção e estrutura.”[3] (tradução minha).
Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: “Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (…) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (…) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[4]
A propósito, prefaciando o meu primeiro livro, escreveu generosa e exageradamente, Calmon de Passos, adepto ferrenho de uma Teoria Geral do Processo: “Em nenhum momento de minha vida de professor ministrei aulas de Processo Penal, nem jamais publiquei algum artigo versando algum de seus problemas relevantes. (…) Para não ser infiel à verdade, direi que se me faltam credenciais como mestre de Processo Penal, não sou de todo desprovido das virtudes de um bom aluno dessa disciplina. E que bom aluno tenho sido quando presente, e sempre estou, às aulas que Rômulo ministra no Curso de Especialização em Processo que coordeno na UNIFACS! Faço coro com meus colegas, unânimes em louvar a clareza de sua exposição, o rigor lógico a que submete seu pensamento, sua correção terminológica e seu empenho em fugir do “discurso” jurídico inconsequente, que muitas vezes se pretende também eloquente. Esse rigor intelectual de Rômulo no tocante ao que ensina é igual ao rigor ético que se impõe em seu comportamento profissional. É esse mestre e esse homem que se revelam presentes nos trabalhos que compõem este volume de estudos de Processo Penal editado pela Forense. Em todos os artigos estão presentes as marcas da excelência de Rômulo: clareza, correção técnica e erudição sem excesso. E concluo asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que foram ontem seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestres.” (Salvador, 07 de março de 2002). Grifei.
[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça na Bahia e Coordenador do Centro de Especialização e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, “Juizados Especiais Criminais”, “Comentários à Lei do Crime Organizado” e “Crítica à Teoria Geral do Processo”, todos estes publicados pela Editora LexMagister, Porto Alegre/RS, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.
[2] A ideia foi do meu amigo Alexandre Morais da Rosa, grande processualista penal e verdadeiro Magistrado. Fica aqui o meu agradecimento pela “dica”. Valeu!
[3] Eugenio Florian, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, págs. 20 a 23.
[4] Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 38 e 40.
Confira aqui
CONJUR – EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas, por João Ozorio de Melo
FIDELIDADE ÀS PROVAS
EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas
08 de julho de 2014, 16:44h
A mentalidade dos promotores americanos está mudando, progressivamente. O esforço sistemático para condenar a qualquer custo todos os réus que caiam na malha da Promotoria e obter a pena mais alta possível para eles vem sendo substituído, aos poucos, por um esforço coordenado para buscar a verdade e promover a justiça, apenas. A coordenação desse esforço é feita por um órgão de controle interno e externo, criado em diversas unidades do Ministério Público do país. Em algumas jurisdições são chamados de Programa de Integridade da Condenação. Em outras, de Unidade de Integridade da Condenação.
Há razões nobres e, de certa forma, vergonhosas, para isso. As vergonhosas dispararam o alarme. Por exemplo, um estudo recente do Centro para Integridade Pública, chamado “Erro Nocivo: Investigando Promotores Locais nos EUA”, examinou processos criminais em 2.341 jurisdições e encontrou inúmeros casos de má conduta de promotores, que quebraram ou manipularam as regras para obter condenações.
O estudo relatou mais de 2 mil casos em que juízes de 1º Grau ou de tribunais de recursos extinguiram a ação, anularam condenações ou reduziram sentenças, citando como causa a má conduta de promotores.
A Promotoria do Distrito de Manhattan, em Nova York, que lidera o movimento pelo porte de seu Programa de Integridade da Condenação, declara em seu website que o objetivo é “buscar justiça em todos os casos que chegam à Promotoria e rever erros passados”. E explica a razão: “Através dos anos e em todo o país, homens e mulheres inocentes têm sido condenados por crimes que não cometeram. Isso não apenas rouba a liberdade da pessoa inocente, como deixa nas ruas um criminoso, livre para cometer mais crimes”.
O website da Unidade de Integridade da Condenação do Condado de Cuyahoga, em Ohio, declara na abertura do texto: “Todos os promotores querem condenar os culpados, não os inocentes. Porém, embora os processos de julgamento e de recursos contenham salvaguardas para todos os acusados de crime, reconhecemos que o sistema de Justiça criminal é uma instituição humana e, como tal, não pode ser perfeito”. Por isso, a Promotoria local criou seu próprio sistema de controle interno e externo.
O programa de Manhattan é liderado pelo promotor Cyrus Vince, um ex-advogado criminalista — um caso raro de advogado criminalista que se converte para a Promotoria, porque o inverso é bastante comum. Alguns promotores que não gostam do programa, dizem que Vince é um advogado criminalista que se travestiu de promotor para criar despesas desnecessárias para o Ministério Público.
Porém, a ex-promotora, ex-juíza e professora da Escola de Direito da Universidade de Washington, em Seattle, Maureen Howard, saiu em sua defesa. Ela declarou ao Huffington Post que “se foi necessário um advogado criminalista se tornar promotor para resgatar os ideais do Ministério Público, ele é muito bem-vindo — e já chegou tarde”.
Para a ex-promotora, Vince e a Promotoria de Manhattan entendem que a função dos membros do Ministério Público é a de promotor de Justiça, não promotor de condenações. Em outras palavras, ela disse, eles estão recuperando o que as diretrizes éticas da classe professam: um membro do Ministério Público é um “ministro da Justiça” — uma espécie de sacerdócio.
Segundo Maureen Howard, os papéis do promotor e do advogado de defesa não são simétricos. A obrigação do advogado de defesa é o de defender seu cliente contra possíveis abusos do Estado, durante o curso do processo. A do promotor é bem diferente.
As proteções constitucionais garantidas aos réus, tais como privilégio contra a autoincriminação, a presunção de inocência, o rigoroso padrão da culpabilidade além da dúvida razoável, a exigência de veredicto unânime do júri (no sistema dos EUA, obviamente), existem para contrabalançar o poder muito maior do Estado sobre o indivíduo, ela diz.
O promotor também tem o dever de buscar provas que podem, potencialmente, prejudicar o seu caso, bem como o de exibir provas exculpatórias para a defesa, voluntariamente e sem pedido, enquanto isso não é um dever da defesa, diz a ex-promotora.
A revelação de prova exculpatória pela acusação à defesa é uma decorrência do sistema americano de “discovery”, um processo em que as duas partes “trocam figurinhas” — isto é, revelam os fatos, as provas, os testemunhos e qualquer outro elemento que possa esclarecer o caso, antes do julgamento. O resultado, muitas vezes, é que não há julgamento, porque a acusação e a defesa fazem um acordo.
A descoberta, a qualquer momento, de que a Promotoria escondeu provas exculpatórias que mudariam o rumo do julgamento enfurece os juízes, muitas vezes, que reprimem duramente o promotor e o faz cair em desgraça até entre os colegas.
Condenações indevidas
Na última semana, a juíza Lynda Van Davis, de Nova Orleans, anulou a condenação à pena de morte de Michael Anderson, de 23 anos, pelo assassinato de cinco pessoas, depois da descoberta de que o promotor escondeu duas peças essenciais de prova.
Essa anulação de julgamento eleva as preocupações da comunidade jurídica do país com o sistema judicial de Nova Orleans, diz Maureen Howard. Ela conta que um estudo recente do advogado Bidish Sarma, da Universidade Southern de Louisiana, revelou que mais condenados à morte na cidade foram libertados do que de executados, devido a comprovações posteriores de condenações erradas.
Mas os promotores não os únicos responsáveis por “condenações erradas”. O Projeto Inocência, que libertou recentemente 317 presos inocentes, alguns deles no corredor da morte, atribui as condenações erradas a, principalmente, seis causas: identificação errada do réu por testemunhas, provas forenses ruins ou mal elaboradas, confissões falsas conseguidas pela Polícia, má conduta de promotores, má-fé de informantes ou denunciantes e serviços ineptos de alguns advogados.
Estudos realizados indicam que as formas mais comuns de má conduta de policiais são os seguintes: sugerir os fatos do crime a um inocente durante longos interrogatórios para que façam uma confissão coerente, coagir confissões falsas, mentir ou iludir os jurados sobre suas observações, deixar de apresentar aos promotores provas exculpatórias, oferecer incentivos para garantir provas não confiáveis de informantes.
As formas mais comuns de má conduta de promotores, segundo esses estudos, são: esconder provas exculpatórias da defesa, manipular, manejar ou destruir provas deliberadamente, permitir a participação de testemunhas sabidamente não confiáveis no julgamento, pressionar testemunhas da defesa a não testemunhar, usar provas forenses fraudulentas, apresentar argumentos enganosos que elevam o valor probatório de testemunhas.
Isso tudo é uma coisa que deve ficar no passado, como declaram as jurisdições da Promotoria americana que criaram as unidades em defesa da integridade da condenação, que estão surgindo uma após a outra em todo o país. Essas unidades têm duas frentes de trabalho principais: uma, impedir que esses problemas voltem a ocorrer daqui para a frente, criando mecanismos de controle para assegurar a correção; outra, aceitar requerimentos de inocentes presos, de seus familiares e advogados, para que voltem a investigar o caso e possam corrigir erros em condenações passadas.
Se a unidade comprovar uma condenação errada, a própria Promotoria tomará a iniciativa de pedir ao juiz a anulação da sentença condenatória.
Os prerrequisitos para uma unidade reexaminar o caso variam um pouco de uma jurisdição para outra, mas incluem, em geral: 1) a condenação deve ter ocorrido dentro da jurisdição; 2) o condenado deve estar vivo; 3) o pedido deve se referir a um caso verdadeiro de inocência – pedidos frívolos e casos de erro processual apenas são descartados; 4) devem existir provas novas e verossímeis da inocência e a promotoria deve ser informada sobre como pode acessar essas provas; 5) o condenado deve renunciar a suas salvaguardas e privilégios processuais, concordar em cooperar com a unidade e em fornecer informações completas à unidade em todas as inquirições – essa última leva alguns advogados a torcer o nariz.
O modelo criado pela Promotoria de Manhattan, seguido pela maioria dos demais programas de outras jurisdições, tem um Comitê da Integridade da Condenação, o chefe do Comitê e um Painel Consultor de Política de Integridade da Condenação.
O comitê é um órgão interno, formado por dez membros graduados da Promotoria, com a atribuição de rever as práticas e políticas relativas ao treinamento dos promotores (novos e veteranos), avaliação de casos, investigação e obrigações de divulgação [de provas e fatos], com foco em possíveis erros, tais como identificações falsas por testemunhas e confissões falsas. O chefe coordena o trabalho do comitê e lidera todas as investigações de casos que apresentam uma reclamação significativa de condenação errada.
O painel consultor é um órgão externo, formado por especialistas respeitados em justiça criminal, incluindo juristas e ex-promotores, com a atribuição de assessorar o comitê e orientá-lo sobre melhores práticas e questões em desenvolvimento na área de condenações erradas.
Para encontrar sites desses programas na Internet, basta pesquisar nos mecanismos de busca as palavras “Conviction Integrity Program” ou “Conviction Integrity Unit”.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 08 de julho de 2014, 16:44h