Rui Cunha Martins – Ponto Cego do Direito

 

ENTREVISTAO Ponto Cego do Direito

27/12/2013 por Rui Cunha Martins

O que o senhor define como ponto cego do Direito?                

Refiro-me a um preço a pagar por todas as arenas do conhecimento hiperfocadas na captura dos indícios, dos testemunhos, das provas. Em todas essas áreas – e aqui o caso do direito não difere do da medicina, do da história, ou do da comunicação social – formam-se zonas de excessiva confiança no potencial conjugado dos sentidos e da razão para ver, decidir, diagnosticar e julgar; uma confiança que, quando é ostensiva e alucinatória, produz, ela própria, inevitavelmente, zonas de penumbra e de distraída opacidade, isto é, na minha formulação, pontos cegosPonto cegoé aquilo que escapa do nosso campo de visão precisamente naqueles momentos em que tudo aparenta estar sob o nosso controlo. Mas, dito isto, devo confessar que não me choca a utilização mais abrangente e solta que tem sido feita do termo. O essencial não está na designação, sabe? O essencial mesmo é perceber as distintas reações dos agentes jurídicos à existência desses “pontos cegos”, com este ou outro nome. O meu pressuposto aqui é o de que quer a atitude de recusa dessa existência, quer a atitude de reconhecimento dessa existência têm correspondência em posições doutrinária e ideologicamente distintas sobre a própria função social dos sistemas jurídicos na contemporaneidade. Entre, de um lado, o argumento de que um campo jurídico supostamente destinado a responder a expectativas de clarificação e certeza não pode, por definição, deter-se com eventuais “pontos cegos”, e, de outro, o argumento de que todo o campo jurídico produz constitutivamente “pontos cegos” que portanto interessa sinalizar e incorporar dogmaticamente, vai uma distância que é tudo menos técnica; é política e é ideológica. É, afinal, uma distância correlativa daquela que existe entre o punitivismo de inspiração securitarista proposto por algum infantilismo legalista e o garantismo de inspiração democrática colhido em sede de adequação constitucional. Ou, para o dizer de outro modo, entre o ativismo justicialista performativamente excitado e a exigência complexa de patamares de conformidade constitucional.

 

Porque usou o termo “the brazilian lessons”?

Essa expressão encerra alguma ironia e tem um duplo significado. Por um lado, refere-se às minhas lições (no sentido mais estrito e académico do termo) proferidas ao longo de anos sucessivos em diversos locais e instituições brasileiras e de algum modo condensadas no livro. Esse será talvez o sentido mais óbvio. Mas, por outro, a expressão remete também para as lições (agora mais no sentido de ilações) que podemos colher, quanto aos aspetos abordados, a partir do caso do Brasil. Digamos, em síntese, que só reconheço interesse às minhas lições brasileiras enquanto elas se reportarem às ilações brasileiras, ou seja, enquanto nelas eu souber acolher as problemáticas emergentes no Brasil; e, naturalmente, enquanto as souber depois cruzar com as problemáticas registadas a outras escalas, não já brasileiras nem forçosamente lusófonas (a opção pela língua inglesa pretende sugerir isso mesmo). É esta operação de “tradução” e de “despistagem” de problemáticas que me interessa; fazer milhas e quilómetros para vender “saber” interessa-me pouco ou nada. Costumo dizer que aquilo que levo comigo e aprendo depois de assegurar uma lição no Brasil é muito mais do que aquilo que aí deixo. Espero agora equilibrar um pouco as coisas com a publicação deste e de outros livros.

 

O senhor conhece grande parte dos grandes juristas brasileiros, como é esta experiência?

É verdade. Orgulho-me disso. Tal como me apraz registar a dispersão de sensibilidades e áreas de especialidade por entre esse grupo de personalidades que frequento, como leitor ou colega. Há aí companheiros de percurso e amigos do peito, claro que sim, mas devo registar de igual modo zonas de franco dissenso ou tendencial incompatilidade, que saudavelmente aqui tenho também. Quando o nosso espectro de referências é complexo, apuramos o sentido demarcatório. Nesse aspeto, sou um privilegiado. As minhas abordagens são hoje profundamente devedoras do modo desenfreado como se verificam aqui no Brasil os cruzamentos entre estética política, sistema jurídico e historicidade; e a verdade, para ser inteiramente sincero, é que, hoje, a minha realidade e o meu horizonte compreensivo são já, eles próprios, dificilmente concebíveis fora do arco de problematicidade e do manancial de significantes do debate brasileiro. Há pois um intercâmbio intelectual em trânsito que define esta experiência. Sempre estranhei, aliás, alguma propensão das gerações que me antecederam para estabelecer relações académicas luso-brasileiras num quadro de retórica partilha formal mas de implícita desigualdade informal em que o brilho parecia ter a sua sede natural num dos lados, cabendo ao outro a correspondente admiração e o devido respeito. Gosto de achar que participo de um relacionamento de outro tipo, no qual há debates que se levantam e que nos interpelam, debates que merecem ser disputados e que temos nós próprios de fazer por merecer.

 

O senhor acredita que esta sua reflexão é completamente voltada ao Processo Penal ou se estende a outras categorias do pensamento jurídico?

Diria que é uma reflexão sobre determinados problemas e conceitos hoje muito requisitados pelos sistemas jurídicos contemporâneos (prova, evidência, convicção, crença, adesão, expectativa, decisão, verdade, processo, reforma) e cujo desempenho se surpreende particularmente bem no ambiente processual penal. Dito isto, importa reconhecer que os próprios desafios trazidos por aquelas noções à área processual e as respostas ensaiadas nesse âmbito obrigam a convocar, por arrasto, as outras áreas jurídicas, nomeadamente a constitucional, bem como áreas não jurídicas, o que de resto se traduz, na estrutura da minha reflexão, pela convocatória de outras tantas categorias e problemas (mudança, democracia, constituição, dirigismo, periferia, contexto e limite).

 

Como o senhor se posiciona acerca do dirigismo constitucional?

Quanto a esse assunto, limito-me, no livro em questão, a trazer para o debate sobre o dirigismo uma leitura que incorpore a dimensão de historicidade dos fenómenos na contemporaneidade. Está aí em causa  o que chamo o presente modo da mudança, isto é, a perceção de uma estética de mudança menos marcada pela superação ou mesmo pela morte do existente do que pela simultaneidade entre o que cessa e o que chega. À luz desta perspetiva, o diagnóstico de “morte” aplicado a modalidades como o dirigismo constitucional, marcadas pelo seu apego a dada conjuntura histórica e a dada conjuntura constitucional muito precisas, omitiria o fato, bem mais sutil, da sua persistência a variados níveis: seja por deslocação para escalas jurisdicionais transnacionais (é, desde cedo, o caso europeu), seja pela sua persistência, mesmo à escala nacional, em redutos dos textos constitucionais que mantêm o seu ADN dirigista, seja pela sua efetiva manutenção em contextos normativos onde o momento histórico não parece favorável a uma colocação do dirigismo no banco dos réus do tempo histórico.

 

Fale-nos mais sobre sua opinião acerca do conflito  entre a hierarquia e heterarquia da normas.

Em bom rigor, essa terminologia é introduzida no livro pelo meu prefaciador, o Professor Gomes Canotilho. Se as minhas colocações se podem inscrever nessa zona reflexiva, é a ele que fico a dever a respetiva inscrição. É justo dar-lhe aqui a palavra. Que sugere ele? Desde logo, que os temas por mim analisados e em particular as problemáticas da sobreposição de competências ganham em ser entendidas no quadro de cenários heterotópicos (heteronomia das ordens de poder, heterarquia das ordens do dinheiro, heterogeneidade das ordens de conhecimento); e que boa parte dos problemas e das resistências compreensivas por mim identificados, designadamente em matéria constitucional, resultam, em fim de contas, de o direito continuar a ser pensado como um sistema de hierarquia de normas e de fontes, aparentando resistir aos mecanismos – mais heterárquicos – de coexistência e cooperação.

 

Como o senhor vê a questão da convicção na aplicação do Direito?

Essa é uma matéria em que começo por mobilizar o muito que aprendi sobre os regimes epistémicos da convicção com o falecido filósofo Fernando Gil, para depois me abalançar ao caso concreto da decisão judicial. Em termos muito sumários, acho importante ter em conta três aspetos. O primeiro é o de que estar convicto, seja em que contexto for, não corresponde à etapa final de um bem sucedido trajeto epistémico de depuração da dúvida, da incerteza ou da pré-comprensão, linear e teleologicamente instruído; isto porque, ao invés – e com isto entramos num segundo aspeto –, não há, por definição, estádio de convicção algum que logre eliminar os elementos de crença que nele persistem e que correspondem à persistência do instintivo e do impensado na estrutura conceptual da convicção; o terceiro aspeto é o de que, a somar a esta contaminação constitutiva e que lhe chega pelo seu próprio interior, por inerência ao seu próprio recorte epistêmico, digamos assim, a convicção sofre ainda o que pode considerar-se uma contaminação extrínseca, precisamente a que lhe advém das expectativas sociais criadas a seu respeito e que a afeta de fora para dentro da fronteira jurídica. Assim postas as coisas, isto é, perante semelhante perfil do mecanismo da convicção, como não concordar com todas as iniciativas destinadas a cercar ao máximo a produção de convencimento judicial?

 

Qual a problemática na pretensão “Celeridade, Eficiência e Economia Processual” neste contexto?

O problema da celeridade é bem um exemplo dos “agentes duplos” em que se tornaram boa parte dos conceitos com que lidamos. Ninguém duvida das vantagens em ter um processo que funcione e que o faça nos termos de eficácia devidos. Aliás, o próprio Carnelutti insistia na impossibilidade de se falar em processo justo nos casos de extremada demora judicial, pela moléstia indelével causada aos implicados. Sucede que aquilo que se chama, nas “sociedades do contraditório”, o devido processo legal, implica, constitutivamente, uma demora. Processo é algo que ocorre no tempo. E se é verdade que visa consubstanciar-se numa decisão, ele estrutura-se numa demora. Ouso dizer que o processo penal existe justamente para garantir uma descoincidência temporal: a que deve existir entre, de um lado, uma coisa que é a evidência, ou seja, um regime de conhecimento suportado pelo intuitivo, o instantâneo e o imediato, e, de outro lado, essa outra coisa que é a prova, ou seja, um regime de conhecimento estruturado sobre a reflexividade, o contraditório e a complexidade. Bem sei toda a contra-argumentação prototípica a este respeito, a maior parte dela de recorte pragmatista (e nem por isso menos ideológica), mas sustento que essa discussão, que importa seguramente travar, deve ter o seu ponto zero ali mesmo naquela descoincidência, que tenho por inegociável em sede de defesa de um processo penal democrático. Se outra for a sede…

 

O que quer dizer quando aponta a competição entre mídia e sistema jurídico?

Simplesmente isto: que o atual enfrentamento entre julgamentos pelos tribunais e julgamentos pela mídia, enfrentamento esse que pode considerar-se uma das expressões maiores da contaminação atrás referida do mecanismo processual das convicções por aquilo que tenho designado como o mecanismo processual das expectativas, remete para um embate a outro nível, o que hoje se estará a processar entre mecanismos estabilizadores de expectativas sociais e normativas – uma função expectavelmente atribuída, num Estado de direito, ao próprio sistema jurídico, mas que ele parece hoje obrigado a repartir, em clima tenso e competitivo, com outros sistemas em presença, em especial com um sistema comunicacional onde a mídia se revela um temível redutor de complexidade, agenciador de expectativas sociais sobre o próprio desempenho do direito. Trato disso em O Ponto Cego do Direito e volto a tratar, agora a propósito do desnorte teórico que, a pretexto da corrupção, reduz a política a um exercício de maniqueísmo moral e o direito a um exercício de faxina social, no trabalho A Hora dos Cadáveres Adiados: Corrupção, Expectativa e Processo Penal.

 

O que poderia nos falar sobre a Verdade e o Sistema?

Eis uma plataforma de discussão que nos levaria bem longe. Não por acaso, dedico um capítulo do livro a esses temas. Se me é permitido, até como forma de conclusão desta nossa entrevista, enunciar, telegraficamente, aquilo que é o meu núcleo duro compreensivo nesta matéria, direi o seguinte: se estamos a pensar num horizonte de constitucionalidade, então a “verdade”, em âmbito processual, é sempre e apenas questão de lugar; e o “sistema”, também em âmbito processual, é sempre e sobretudo questão de democraticidade.


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