Furto Supermercado – Crime Impossível

Vistos para sentença.
I – Relatório.
O representante do Ministério Público em exercício nesta Comarca ofereceu denúncia contra E. V. S., já qualificado nos autos, dando-o como incurso nas sanções do art. 155, caput, do Código Penal, tendo em vista os atos delituosos assim narrados na peça acusatória:
No  dia  31 de janeiro de 2014, por volta das 20h30min, no H. B., localizado na *, Florianópolis-SC, o denunciado   E. V. S. , com manifesto  animus furandi, subtraiu para proveito próprio, 1 (uma) furadeira e 2 (duas) polidoras automotivas conforme Termo de Exibição e Apreensão de fl.11. Por ocasião dos fatos, o denunciado foi detido pelos seguranças do referido estabelecimento, quando estava saindo sem passar pelos caixas para pagar a mercadoria. Ato contínuo, a polícia militar foi acionada, logrando encontrar o denunciado na possa da res, detido pelos seguranças do estabelecimento comercial, tendo sido preso em flagrante delito.
O acusado foi preso em flagrante no dia 31 de janeiro de 2014 (fl. 02).
Certificados os antecedentes criminais do denunciado (fl. 34).
A prisão em flagrante do denunciado foi homologada pelo juiz em regime de plantão (fl. 36).
Foi arbitrada fiança no valor de 01 (um) salário mínimo, a qual não foi prestada pelo denunciado (fl. 39).
Os autos vieram conclusos.
É o relatório.
II – Fundamentação
A primeira coisa a ser dita é que as condições pessoais do agente não podem integrar o tipo, ou seja, ou a conduta descrita é crime para o Paulo, João, Alfredo, Alexandre, Harold, ou não é para ninguém. A superação do Direito Penal do Autor, de cariz totalitário, isto é, em que as condições pessoais do agente integram o tipo, é conquista democrática. Não se pode, assim, porque há registros antecedentes entender, por este fato pessoal do autor, que há crime.. A vingar este entendimento, caso fosse a primeira infração, não haveria. O Direito Penal deve tratar os sujeitos de maneira igual. As condições pessoais somente importam no momento da aplicação da pena. O STJ, no HC n. 118.702, DJU 16.02.2009, relatora Min. Laurita Vaz, no caso da insignificância, hipótese também aplicável, afirmou: “As circunstâncias de caráter eminentemente pessoal não interferem no reconhecimento do delito de bagatela, uma vez que este está relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto, e não com a pessoa do acusado, que não pode ser considerara para aplicação do princípio da insignificância, sob pena de incorrer no inaceitável Direito Penal do autor, incompatível com o sistema democrático”. Irrelevante, pois, se o denunciado é vezeiro nas práticas porque isto é antecipar o momento da aplicação da pena e o usar para criminalizar. Isto é o básico da teoria do delito!
No caso presente restou evidenciado que o denunciado, em tese, adentrou o estabelecimento H. B. localizado na rua *, Florianópolis, e de lá tentou subtrair os bens descritos na denúncia, porém, foi monitorado por seguranças, e, antes mesmo de sair do local, foi abordado e preso em flagrante.
Extrai-se dos depoimentos prestados na delegacia de polícia que D. H.C., chefe de segurança do H. B., começou a monitorar o denunciado assim que este adentrou o estabelecimento, visto que era suspeito de praticar furtos no local. Dessa forma, por meio do circuito interno de TV, o denunciado foi observado durante todo o percurso, e, no momento em que saía do hipermercado, sem pagar pelos produtos, foi abordado pelo depoente e outros quatro seguranças, os quais imediatamente acionaram a polícia militar, que prendeu E. em flagrante.
Diante da evolução do Direito Penal, especialmente do funcionalismo de Claus Roxin, a conduta que não causa risco significativo ao bem jurídico é atípica, pois a imputação passa a exigir – diferentemente dos modelos causalista e finalista – algo além do viés subjetivo (dolo) e da relação de causalidade. Imputar a alguém a responsabilidade penal implica criação de um risco (relevante) não permitido em que haja tanto desvalor da conduta como do resultado.
A imputação objetiva veio conferir ao tipo a matiz valorativa necessária à conduta, na linha do que Ferrajoli também propõe. Com base na imputação objetiva, pois, perde o sentido buscar discutir as maiores polêmicas doutrinárias/jurisprudenciais sobre o delito em comento, havendo quem resgate no direito romano a fonte das controvérsias. Quando se considera consumado o furto? É necessária a posse pacífica, tranquila, desvigiada da coisa? Ou basta o simples apoderamento, ainda que efêmero, para aperfeiçoar o tipo? A perseguição imediata obsta a consumação? Enfim, todos esses questionamentos são absolutamente irrelevantes. Somente se compreende a discussão dentro de um paradigma formal e de uma dogmática acrítica.
No mesmo sentido, André Luís Callegari, em texto um pouco longo, mas que esclarece a situação presente, pontua:
Com a adoção da teoria objetiva pelo nosso Código Penal, deve-se avaliar melhor algumas condenações por tentativa de furto em estabelecimentos comerciais (lojas, supermercados, etc.) em que o agente desde o início de sua conduta é previamente vigiado, sendo detido quando procura se retirar do local sem efetuar o pagamento. Hipótese também a ser verificada é dos estabelecimentos comerciais que possuem sistema de alarme por etiqueta magnética, que dispara quando o agente tenta sair do local levando as mercadorias sem a retirada da etiqueta e, conseqüentemente, sem pagá-las.
Parte da jurisprudência fundamenta as condenações por tentativa de furto baseada em fatores como: vontade do agente contrária ao Direito e início da execução do fato que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Acrescentam, ainda, que o bem jurídico tutelado foi posto em perigo diante da conduta do agente.
Pensamos que tais decisões somente se sustentam com base na teoria subjetiva, segundo a qual a razão penal da tentativa é a vontade contrária ao Direito colocada na ação. Com isso, o decisivo não seria a efetiva colocação em perigo, pelo fato, do objeto protegido da ação, senão o injusto da ação materializado no dolo do delito. A teoria subjetiva leva a ampliação do âmbito da tentativa punível à custa da ação preparatória, a admissão da punibilidade inclusive da tentativa absolutamente inidônea e a equiparação, em princípio, da punição da tentativa e da consumação, posto que a vontade contrária ao Direito em ambos os casos é a mesma(1). Ainda, para esta teoria não necessita a realização exterior de vontade ser, enquanto tal, perigosa, senão que para o ordenamento jurídico é seriamente perigosa já a vontade que crê colocar com sua atuação de imediato em relação com a realização do delito. Castiga-se, por isso, prescindindo a falta de perigosidade da tentativa com meios inidôneos ou a respeito de um objeto inidôneo, quando o autor estima-os inidôneos(2).
Outra fundamentação que se pode utilizar é a que toma como base a teoria individual-objetiva ou a teoria da impressão que menciona que o decisivo para a punibilidade da tentativa é a vontade do autor contrária ao Direito, mas não como um fenômeno em si mesmo, senão entendida em seus efeitos sobre a comunidade. A confiança da coletividade na vigência do ordenamento jurídico, como um dos poderes que configuram objetivamente a vida social, perder-se-ia se ficasse impune quem se propôs seriamente realizar um delito grave e deu início a sua execução(3).
Com a adoção da teoria objetiva, deve-se levar em conta quais os requisitos para o reconhecimento da tentativa inidônea, é dizer, se nos casos em que o agente é previamente vigiado, fato que inviabilizará o cometimento do delito, estaremos diante da tentativa ou da hipótese de crime impossível.
Para Jescheck, ao comentar a teoria objetiva, o merecimento da pena da tentativa encontra-se somente na colocação em perigo do objeto da ação protegido pelo tipo, posto que o dolo é igual por natureza em todas as fases do fato (preparação, execução e consumação), a delimitação da tentativa frente a ação preparatória busca-se no âmbito objetivo. A seu teor, a razão jurídica da punibilidade da tentativa não está na vontade do autor, senão no perigo próximo da realização do resultado típico. Assim, a tentativa se castigaria pela elevada probabilidade da produção do injusto do resultado. Entretanto, dado que esta probabilidade só se pode afirmar, por princípio, com o início da execução e unicamente quando a ação da tentativa for inidônea, a teoria objetiva leva a restrição da punibilidade da tentativa frente a ação preparatória e afasta a punibilidade da tentativa absolutamente inidônea(4).
Com efeito, se a adoção da teoria objetiva indica que a razão da punibilidade não está na vontade do agente, mas no perigo próximo da realização do resultado típico, conclui-se que nos casos em que o estabelecimento é previamente vigiado ou que há sistema de proteção de alarme com etiqueta magnética não há perigo próximo de realização do resultado típico.
Porém, não podemos olvidar que o art. 17 do CP menciona que não se pune a tentativa por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto. Assim não há qualquer menção quanto ao requisito subjetivo, é dizer, vontade do agente (teoria subjetiva). Para a teoria adotada pelo Código, restará impune a tentativa quando, por exemplo, o meio for absolutamente ineficaz para consumar o crime. Nessa linha de raciocínio, quando o meio for relativamente ineficaz, haverá tentativa. Porém, a medida para a distinção entre inidoneidade absoluta e relativa é um ponto de vista ex post, isto é, do juiz. Somente o julgador do processo é que poderá avaliar o caso concreto, verificando, assim, a ineficácia ou impropriedade absoluta do objeto.
Logo, nos casos em que a conduta do agente é previamente vigiada, é dizer, desde o início é controlada, por exemplo, por agentes de segurança de um estabelecimento comercial, torna-se impossível a consumação do delito, ainda que os agentes esperem o momento adequado para efetuar a prisão. Não há como se falar em tentativa de furto, posto que se analisada a situação, veremos que o meio utilizado pelo agente era absolutamente ineficaz. Isso porque desde o início era vigiado, o que impossibilitaria a consumação do delito. Ocorre que nesses casos em que a ação é percebida desde o início pela vigilância, torna-se ex ante inidônea, em face do conjunto das circunstâncias, visto que não apresenta perigo concreto ao bem jurídico.
Odone Sanguiné, após estudo minucioso, lembra que nesses casos, não obstante o valor da ação (vontade contrária ao Direito), tal comportamento, de acordo com a concepção objetiva adotada pelo Código Penal vigente em tema de crime impossível, não aparece como perigoso para o bem jurídico. Salienta, ainda, que o legislador, desde uma política-garantidora, própria do Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF) somente pode punir condutas que externamente apareçam como objetivamente perigosas (idôneas) para lesionar bens jurídicos. A norma jurídico-penal não tem necessidade de proibir condutas inidôneas(5).
Nessa mesma linha de argumentação, deve-se reconhecer a tentativa inidônea (crime impossível) naquelas situações em que a mercadoria do estabelecimento comercial encontra-se com mecanismo magnético que faz disparar o sistema de proteção quando não retirado o dispostivo. É que em tais casos o meio utilizado pelo agente, por exemplo, ocultar a mercadoria sob as vestes ou numa bolsa, é absolutamente ineficaz para a consumação do delito, isso porque ao tentar se retirar do estabelecimento acionará o sistema de alarme. Nesse sentido já houve decisão do TACrim/SP, em que foi relator o juiz Geraldo Gomes, ficando consignado que “se a res que o acusado pretendia furtar estava protegida por um sistema de alarme, tornando absolutamente ineficaz o meio por ele empregado para subtraí-la, tem-se, na espécie, autêntica tentativa impossível”(6).
O Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, por suas Câmaras Criminais, vem decidindo reiteradamente nesse sentido. Assim a ementa de acórdão em que foi relator o eminente juiz Paulo Moacir Aguiar Vieira: “Tentativa de furto em supermercado. Crime impossível. Vigilante que controla desde o início todos os movimentos da ré, apreendendo a mercadoria e detendo a acusada quando essa procurava se retirar sem efetuar o pagamento. O pleno sucesso da ação preventiva de proteção ao patrimônio contrasta com a inidoneidade do meio empregado pela ré para lograr o propósito delituoso (art. 17 do CP). Absolvição por ser o fato penalmente irrelevante”(Ap. Crim. nº 295.014.104, 2ª CCrim., TARGS).
Assim, ainda que tais decisões despertem a atenção de alguns setores da doutrina, norteiam-se pelos critérios mais modernos do Direito Penal, é dizer, não se desvalora somente a ação contrária ao direito, mas, também, o resultado. Portanto, nos casos em que efetivamente o bem jurídico protegido não foi posto em perigo, não há como punir a tentativa, devendo-se reconhecer o crime impossível.
Nesse sentido, colhe-se precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO MINISTERIAL. FURTO NA FORMA TENTADA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. PEDIDO DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO. CRIME IMPOSSÍVEL Tentativa de furto que é frustrada em razão de vigilância exercida desde o início da ação, através de monitoramento por câmeras de vigilância. Hipótese de crime impossível caracterizada. Decisão mantida por seus próprios fundamentos RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Criminal n. 70048551816. Sexta Câmara Criminal. Relator Min. João Batista Marques Tovo. Julgado em 24/05/2012).
É o caso dos autos, no qual o agente foi monitorado e quando saiu do estabelecimento, restando abordado na saída por funcionários do local. Por fim, reitero, de nada importam as condições subjetivas, pois no caso a conduta precisa ser apta à responsabilização, razão pela qual cabe, no caso, a rejeição da denúncia, por ausência de conduta típica, nos moldes do art. 395, III, do CPP (LOPES JR, Aury. Direito Processual Constitucional, v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 343-344).
III – Dispositivo.
Por tais razões, REJEITO A DENÚNCIA oferecida em face do de E. V. S. , já qualificado nos autos, com base no art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal.
Expeça-se, imediatamente, alvará de soltura.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Transitada em julgado, arquivem-se.

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