Quando o Juiz Pergunta, anula

Concordo plenamente

Decisão da 37a Vara Criminal da Comarca da Capital – Rio de Janeiro – TJRJ

Processo nº 0184619-77.2011.8.19.0001

CONCLUSÃO

Aos 3 de fevereiro de 2014

faço conclusos estes autos ao MM Juiz de Direito

Dr. Marcos Augusto Ramos Peixoto,

do que, para constar, lavro este termo.

p/Escrivão

DECISÃO

Impõe-se a declaração de nulidade do ato judicial realizado através de Carta Precatória e acostado às fls. 143/145.

Primeiramente porque foi realizado sem a presença do Ministério Público, como se constata de fls. 143 e da gravação contida na mídia juntada às fls. 145; em segundo lugar porque, ausente o Ministério Público, dada inicialmente a palavra à Defensoria Pública e nada tendo sido perguntado por esta, assumiu então o i. magistrado a condução das perguntas integralmente; e, em terceiro lugar porque, ao término de sua inquirição, o i. magistrado (que na prática assumiu as funções do órgão acusatório) não deu a palavra novamente à defesa de modo a viabilizar a esta a formulação de indagações.

Ora, com a devida vênia, tais posturas violam frontalmente o princípio acusatório erigido a partir do artigo 109, inciso I, da Constituição Federal, o princípio do devido processo legal contido no inciso LIV do artigo 5º da Carta Maior, e os princípios da ampla defesa e do contraditório previsto no inciso LV deste mesmo artigo da Carta Fundamental.

Ausente ainda que justificadamente o Ministério Público, o que deveria ter feito o i. magistrado? Simples: aguardado sua presença ou adiado o ato.

Realizar a oitiva de testemunha sem a presença do órgão ministerial implica em cerceamento de acusação e violação do princípio acusatório na medida em que o juiz impede que o “dono da lide” conduza a produção da prova no sentido que entende relevante e pertinente, passando a atuar o Poder Judiciário ativamente na busca da verdade processual suplementando a ausência do órgão designado constitucionalmente para o exercício da função acusatória e de persecução criminal em Juízo (e fora dele).[1]

Ademais, agindo desta forma afronta o Poder Judiciário ao quanto resta determinado como sendo o devido processo aplicável à espécie, qual seja, a regra contida no artigo 212 e seu parágrafo com a redação que lhes conferiu a Lei nº 11.690, de 2008.

Ao magistrado, na atual quadratura de um processo penal democrático, compete presidir a audiência conferindo de início às partes o direito a formularem diretamente às testemunhas as perguntas que entendam cabíveis, não admitindo aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida, para somente ao final complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos.

Atuando em substituição ao órgão acusatório, i.e., suplementando, suprindo a ausência de perguntas pela acusação (seja o Ministério Público, seja o querelante), o juiz se desveste da função de julgador (dito imparcial) e passa à função de acusador, assumindo o ônus da produção probatória que incumbe às partes e não ao Poder Judiciário, violando desta feita cláusula pétrea constitucional[2].

Ao final do ato judicial aqui analisado, o eminente “juiz-promotor” encerra sua pormenorizada inquirição da testemunha e, tendo sido estas as primeiras e únicas indagações feitas (ou seja, após surpreender a defesa que não formulou perguntas porque o órgão acusatório, obviamente, ausente, não as havia feito), não dá a palavra ao defensor nomeado para o ato, subtraindo, assim, à defesa ad hoc a possibilidade de contraditar as perguntas suscitadas pelo próprio magistrado e, assim, submeter a inquirição feita à ampla defesa.[3]

Indicando a lei processual penal que ao juiz compete tão-só complementar a inquirição sobre os pontos suscitados pelas partes e não suficientemente esclarecidos pelas testemunhas, é de bom alvitre que, o fazendo, sempre abra novamente o ensejo às partes para se manifestarem antes de dar por encerrado o ato probatório, isto porque eventual resposta a pergunta sua pode ter trazido surpresa às partes, inovando o contexto fático, tornando conveniente que se oportunize a possibilidade de reperguntas.[4]

Tal providência, entretanto, ganha redobrado e especial relevo quando o próprio magistrado conduz toda inquirição, atuando no lugar reservado ao Ministério Público na divisão dos ônus probatórios (artigo 156 do Código de Processo Penal), não lhe sendo facultado quiçá por este já amplamente criticável artigo de lei (considerando a parte final do caput e respectivos incisos, que temos por não recepcionados pela ordem constitucional vigente) portar-se como se vê no ato processual aqui examinado. [5]

Cabe notar, por fim, que estamos diante de prova oral produzida em sede de Carta Precatória destinada a outro Estado (Santa Catarina), na qual não se fez presente o acusado para subsidiar a defesa técnica, razão pela qual com ainda maior pertinência cabe sustentar que forma é garantia, e o desrespeito àquela implica inexoravelmente em rompimento desta.

Alguém poderá alegar ausência de prejuízo e, por isto, o não cabimento da anulação por conta da vetusta redação do artigo 563 do Código de Processo Penal. Devemos, para esta hipótese, redarguir preventivamente que se não há prejuízo em graves violações aos princípios acusatório, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, cláusulas pétreas constitucionais vinculados a garantias fundamentais do cidadão, tudo junto num mesmo ato, não sei mais dizer quando haverá…[6]

Porém, indo além: aqui, o prejuízo ressalta evidente e concreto já que, de um lado, se realizou uma audiência e uma inquirição sem a presença (sem a ciência?) do Ministério Público e, assim, sem a possibilidade de exercício efetivo da função acusatória; de outro, após surpreender a defesa com uma ampla gama de perguntas supletivas àquela função, o “juiz-promotor” (melhor diríamos inquisidor?) não deu o ensejo de submeter sua inusitada inquirição ao crivo da defesa e, portanto, ao contraditório. Novamente aqui: se nisto não há concretamente prejuízo, não sei mais quando ocorrerá…

Do exposto, enfim, declaro a nulidade do ato contido às fls. 143/145.

P.I. Vista ao Ministério Público e Defensoria Pública.

Preclusa esta decisão, desentranhem-se fls. 143/145 para que sejam inutilizadas em Cartório, e expeça-se nova deprecata para a oitiva de Thiago Augusto da Silva, cientificando-se as partes.

Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 2014.

Marcos Augusto Ramos Peixoto

Juiz de Direito


[1] Nas palavras de Alexandre Moraes da Rosa, “Se no jogo não houver juiz, os lugares são indistintos. Não se pode confundir o papel do julgador com o dos jogadores. As decisões do julgador estão vinculadas às jogadas. Não pode ele, assim, tomar um lugar que não é seu, cabendo-lhe garantir o fair play, isto é, o jogo limpo (CPP, art. 251). A Constituição da República desenha Instituições (Poder Judiciário. Ministério Público, Defensoria e Advocacia) com atribuições específicas. Assumir a função processual que não é sua vicia o jogo. Na condução da partida processual deve o julgador evitar procrastinações e jogadas ilegais, advertindo os jogadores e declarando nulas as jogadas ilegais. Enfim, cabe-lhe garantir direitos processuais, sem participação na gestão da prova ou em nome da ilusória Verdade Real” (ROSA, Alexandre Morais da, Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1ª edição, 2013, págs. 86/87).

[2] “(…) se na estrutura inquisitória o juiz “acusa”, na acusatória”, sustenta Geraldo Prado, “a existência de parte autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade que deve marcar a sua atuação” (PRADO, Geraldo, Sistema Acusatório, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 3ª edição, 2005, pág. 175).

[3] Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior sustentam: “No processo penal marcado pela democraticidade, o acusado tem o direito inalienável de reagir à acusação. Em um processo penal de partes, a possibilidade
de controlar as provas (e, inclusive, produzir contraprova) e se manifestar sobre os atos do acusador é inafastável. O direito de reação integra o contraditório, garantia essencial à conformação do processo penal ao modelo acusatório. O direito de controlar a prova produzida pela acusação, através da possibilidade tanto de contestar seus termos quanto de produzir novas provas em sentido contrário, revela a existência de um verdadeiro direito da defesa de participar ativamente do processo, o que significa a possibilidade de influir diretamente na construção da decisão penal
” (CASARA, Rubens R.R. e MELCHIOR, Antonio Pedro, Teoria do Processo Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1ª edição, 2013, pág. 516).

[4] É novamente Geraldo Prado quem aponta: “Pode ainda o juiz, é certo, reperguntar às testemunhas, aos peritos e às partes privadas, desde que preserve o direito das partes colocarem ulteriores perguntas (artigos 506, 498 e 503 do CPP), de tal sorte que o princípio da busca da verdade real é significativamente abrandado, sem, todavia, reservar ao juiz um papel de completa passividade” (PRADO, Geraldo, op. cit., pág. 162).

[5] Antonio Pedro Melchior esclarece: “Um sistema processual democrático estabelece o local do julgador, na medida em que fortalece o diálogo contraditório das partes e o fardo probatório que recai sobre o órgão da acusação. Esta é a principal estratégia de regulação do poder punitivo estatal que o julgador presenta”  (MELCHIOR, Antonio Pedro, O Juiz e a Prova, Curitiba: Juruá, 1ª edição, 2013, pág. 141).

[6]Quando o vício do ato atinge o contraditório ou a própria atividade jurisdicional, é de tal gravidade que o interesse público, na realização da justiça, resta prejudicado. Parte da doutrina costuma dizer que esta nulidade é absoluta, portanto, pode ser declarada de ofício pelo juiz e a qualquer tempo, pois não se admite a convalidação” (NICOLITT, André, Manual de Processo Penal, São Paulo: Editora Campus, 3ª edição, 2012, págs. 492/493).


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