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“MEA CULPA, MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA”, DISSE O MINISTRO MARCO AURÉLIO: HABEAS CORPUS OU RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL? E O PRINCÍPIO DA INSIGINIFICÂNCIA? , por Romulo de Andrade Moreira

“MEA CULPA, MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA”, DISSE O MINISTRO MARCO AURÉLIO: HABEAS CORPUS OU RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL? E O PRINCÍPIO DA INSIGINIFICÂNCIA?[1]

 

 

 

 

Em entrevista concedida ao jornalista Pedro Canário da revista Consultor Jurídico, o Ministro Marco Aurélio admitiu que foi o autor da tese absurda (o adjetivo é meu) que levou o Supremo Tribunal Federal “a adotar uma das jurisprudência que mais causou polêmica nos últimos tempos. É a opção pelo Habeas Corpus de ofício contra o uso do Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário.”

Segundo a matéria, a “quantidade de Habeas Corpus que chega à Corte é enorme, e o remédio encontrado pela 1ª. Turma foi não conhecer mais do Habeas Corpus impetrado como substituto de recurso ordinário constitucional. E foi ele quem trouxe o meio termo: se o Habeas Corpus for impetrado onde caberia o recurso ordinário, a turma não deve conhecer, mas se houver violação á liberdade de ir e vir, a ordem deve ser concedida de ofício. Criou-se o Habeas Corpus de ofício. A 2ª. Turma não embarcou nessa tese, e muitos advogados reclamaram que o Supremo estava usando de subterfúgios teóricos para restringir sua própria competência penal. E quem sai prejudicado é o cidadão preso injustamente.”

Pouco mais de dois anos depois dessa movimentação jurisprudencial, o Ministro Marco Aurélio comentou: “Se arrependimento matasse, hoje eu estaria morto”. E estaria mesmo, digo eu…

Segundo a matéria, “advogados relatam que o Supremo tem usado decisões judiciais para sinalizar uma redução de sua jurisdição criminal, o que seria ilegítimo. Reclamam que as turmas estão ampliando o uso da Súmula 691, que impede a concessão de Habeas Corpus contra decisão liminar de relator do caso no Superior Tribunal de Justiça, e também que estão rejeitando Habeas Corpus quando há Recurso Especial já em trâmite no Superior Tribunal de Justiça. Ou quando a decisão condenatória já transitou em julgado.”

Aliás, segundo Pedro Canário, “não são só os advogados. Na sessão do dia 9 de dezembro de 2014, o Ministro Gilmar Mendes, da 2ª. Turma criticou a moda na tentativa de esvaziar o Habeas Corpus. O tema sempre opôs Gilmar e o vice decano. O primeiro por entender que a tal jurisprudência defensiva rompe com uma tradição já quase bicentenária por causa do excesso de Habeas Corpus em trâmite. Marco Aurélio por defender que o excesso de Habeas Corpus justificaria essa contenção jurisprudencial.

Hoje o Ministro Marco Aurélio concorda com o colega e com os advogados. Afirma que, em nome da promoção de uma racionalização, o Supremo abusou do que chama de autodefesa contra a sobrecarga de processos: “Para utilizar uma expressão que ouvi pela primeira vez do ministro Francisco Rezek, o Habeas Corpus foi muito barateado. Passou a ser praticamente Bombril”, disse em entrevista à ConJur, fazendo alusão ao produto de mil e uma utilidades.”

Segundo ele, houve um “abuso no manejo do Habeas Corpus e por isso o tribunal passou a delimitar mais as possibilidades de impetração. Cabia uma racionalização, mas sem chegar a extremos, afirma. Em Direito o meio justifica o fim e não o fim ao meio. Se você pode chegar a um resultado tendo em conta o direito posto você chega. Se não pode, tem que recuar.”

Veja a entrevista completa:

ConJur — Muitos advogados reclamam que o Supremo tem restringido a própria competência penal por meio da jurisdição. Falam da jurisprudência do Habeas Corpus de ofício e de um endurecimento na aplicação da Súmula 691. O senhor concorda? Ministro Marco Aurélio — Se arrependimento matasse, hoje eu estaria morto.

ConJur — Como assim? Marco Aurélio — Pela tese que eu suscitei de não se admitir o Habeas Corpus substitutivo do recurso ordinário constitucional, para três meses depois eu próprio chegar ao meio termo. E os antigos diziam que a virtude está no meio termo. As posições extremadas devem ser abandonadas. Mas de que forma? Admitindo o Habeas Corpus toda vez que estiver em jogo a liberdade de ir e vir do paciente, quer por estar na rua um mandado de prisão ou por ele já ter sido implementado. Mas a partir desse entendimento, a ótica de se adotar um rigor maior na adequação caiu tão a gosto que passaram, por exemplo, a apontar: se já transitou em julgado não cabia Habeas Corpus; se a decisão poderia ter sido impugnada, é o caso de ir para o STJ mediante o Recurso Especial. E se a parte não manejou o especial não cabe Habeas Corpus. Aí é diminuir muito a importância dessa ação nobre, de envergadura maior, porque prevista na Constituição, que é o Habeas Corpus.”

ConJur — Então os advogados têm razão: tem havido restrição à jurisdição criminal. Marco Aurélio — A meu ver está havendo certo exagero na racionalização dos trabalhos em prejuízo da cidadania e dos cidadãos em geral. Ou seja, se está potencializando, para utilizar um português bem claro, a mais não poder, a autodefesa, tendo em conta a sobrecarga de processos. Mas a sobrecarga de processos não autoriza o órgão julgador a forçar a mão para se ver livre destes ou daqueles processos. O jurisdicionado não pode ser prejudicado.”

ConJur — O que o senhor quer dizer com exagero na racionalização dos trabalhos?Marco Aurélio – Ocorreu, e os impetrantes têm que admitir, um abuso no manejamento do Habeas Corpus. Para utilizar uma expressão que ouvi pela primeira vez do ministro Francisco Rezek, o Habeas Corpus foi muito barateado. Passou a ser praticamente Bombril. E cabia uma racionalização, mas sem chegar a extremos. Ou seja, adotando-se uma posição intermediária, que é a mais aceitável. Por isso é que eu disse que houve uma racionalização num enxugamento do número de Habeas Corpus. E em Direito o meio justifica o fim e não o fim o meio. Se você pode chegar a um resultado tendo em conta o direito posto você chega. Se não pode, tem que recuar.”

ConJur — Ano passado o senhor voltou a criticar os colegas por atraso no início das sessões. Isso continua? Marco Aurélio – Precisamos ser um pouquinho mais afeitos ao cumprimento dos horários. Mas hoje temos dois fenômenos que preocupam. Há uma cadeira vaga, reconheço. E tarda a designação daquele que a ocupará, porque o ministro Joaquim Barbosa se aposentou em agosto. Mas há duas coisas que me preocupam muito. O problema do horário, porque nós temos outros compromissos, o nosso trabalho não se limita à sessão. E a outra questão  é a existência de varias cadeiras vazias no Plenário.”

ConJur — Falta de quórum? Marco Aurélio — Hoje, por exemplo, havia uma tropa de advogados para julgar uma matéria importantíssima, tendo em conta a inconstitucionalidade ou não – foi declarada a inconstitucionalidade pelo Tribunal de Justiça do Rio – da possibilidade de se ter o contrato de alienação fiduciária registrado apenas no Detran. Ou seja, a notícia da alienação no certificado de propriedade. Os advogados vieram dos estados para o julgamento dessa ação. Por que não julgamos? Porque não havia oito integrantes no Plenário que participassem do julgamento. À época da velha guarda dificilmente se tinha uma cadeira vaga.”

ConJur — O senhor atribui isso a alguma coisa?
Marco Aurélio — Atribuo à quadra vivenciada pelo Brasil. É uma quadra de abandono a princípios, de perda de parâmetros, de inversão de valores, em que o dito passa pelo não dito, o certo pelo errado. E o Supremo é a última trincheira da cidadania, ele deve dar o exemplo
.

ConJur — O princípio da insignificância pode ser aplicado a réu reincidente? Marco Aurélio — Veja, geralmente se articula o princípio da insignificância no caso de furto. Mas quanto ao furto, o juiz pode inclusive deixar de aplicar a pena e aplicar apenas a pena de multa, em se tratando de coisa furtada de pequeno valor. Também no campo da autodefesa se passou a confundir o problema do instituto da ausência de interesse na persecução criminal com uma disciplina que houve na Fazenda quanto às execuções fiscais. E aí essa disciplina apontou que em se tratando de execução menor do que R$ 20 mil, o processo de execução fica suspenso para aguardar-se outros débitos e aí haver a cumulação. Mas é uma disciplina administrativa que não repercute no campo penal. Mas passou-se a proclamar. A minha turma conclui dessa forma, por exemplo, no caso de descaminho, em que, quando o valor do tributo devido é inferior a R$ 20 mil, não há interesse do Estado acusador em ingressar com ação penal.”

ConJur — Esse valor antes era de R$ 10 mil, não era? Marco Aurélio — Era R$ 10 mil e majoraram. Mas nós sabemos que a responsabilidade civil e a responsabilidade administrativa são distintas da responsabilidade penal. O pronunciamento no campo penal repercute nos outros campos se você declarar inexistente o fato ou que não houve autoria. Mas a recíproca não é verdadeira. O que decidido no campo administrativo ou civil não repercute no campo penal. As responsabilidades são diversas.”

ConJur — Então não deveria haver critério objetivo para a insignificância? Marco Aurélio — Não, não, não. E temos que perceber que há certos crimes em que não se pode cogitar da insignificância. Por exemplo, o crime praticado que se revele um crime militar. Nós não podemos, ante dois predicados das Forças Armadas, a hierarquia e a disciplina, cogitar de insignificância. Senão vai virar uma babel o quartel. Em segundo lugar, o instituto da insignificância é uma construção jurisprudencial. Então não podemos exacerbar essa construção.”

ConJur — A discussão da exacerbação é recorrente, principalmente quando se trata de controle de constitucionalidade. O senhor acha que o Supremo tem exacerbado seu próprio papel? Marco Aurélio — Há um princípio que tem de estar presente, que é o da autocontenção. Quanto mais escassa a possibilidade de se reverter o quadro decisório, maior tem que ser o cuidado da decisão. Não é o fato de o Supremo não ter acima dele um órgão para rever as respectivas decisões que o levará a atuar fora das balizas reveladas pelo arcabouço normativo. E eu costumo dizer, principalmente quando em jogo outros Poderes, que quando o Supremo avança e extravasa certos limites ele lança um bumerangue que poderá voltar e bater na teste dele, o Supremo.”

ConJur — A repercussão geral vem sendo tratada como um gargalo. O Supremo reconhece mais casos do que pode julgar. Deve haver limite para o reconhecimento? Marco Aurélio — De inicio, não. Tem que haver uma conscientização quanto ao fato de que a repercussão geral veio como um filtro, para o Supremo de certa forma pinçar o que ele acha que deve julgar. Mas quando surge um instituto, a tendência é de se potencializar, de se acionar e se ter vários casos reconhecidos. Foi o que ocorreu. Estávamos numa situação crítica no Plenário que já foi resolvida: o Plenário não tinha tempo pra julgar recurso extraordinário com repercussão geral. Agora nós temos julgado e muito, numa produção que está surpreendendo a todos, porque deslocamos o que podíamos deslocar via regimento para as turmas, que são o Supremo dividido.”

ConJur — Então o Plenário hoje está livre para discutir as questões mais importantes? Marco Aurélio — A tendência é que o Plenário só discuta questões de controle concentrado — processo objetivo pra declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei — e recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida.

ConJur — Na discussão sobre a existência ou não da repercussão geral, a divergência deve ser fundamentada? Ou basta que se diga sim ou não? Marco Aurélio — Hoje é sim ou não. Eu fundamento todos e não deixo de me pronunciar, porque o tribunal admite que, em se omitindo o integrante no prazo de 20 dias, que é o prazo em que o processo fica na telinha do denominado Plenário Virtual, esse ato omissivo, como se pudesse haver, em termos de voto, ato omissivo, é no sentido de admitir-se a repercussão. Mas isso é muito ruim. Agora, claro que antes de o relator colocar o processo no Plenário Virtual ele deve exercer um crivo quanto aos pressupostos de recorribilidade.”

ConJur — Era isso o que estava sendo discutido no caso do Seguro de Acidente de Trabalho, não é? Marco Aurélio — Isso, estamos votando essa matéria no caso do SAT, o Seguro de Acidente de Trabalho. Entre os pressupostos de recorribilidade tem um formal, que é capítulo próprio versando a repercussão nas razões do extraordinário. No caso concreto não havia. Mas mesmo assim temos quatro votos querendo julgar de qualquer forma. Se julgarmos de qualquer forma estaremos adotando uma posição conflitante com o que todos os gabinetes fazem. Agora mesmo acabei de julgar uma lista do presidente, de seis processos, em que ele negou o seguimento do extraordinário por não ter esse capítulo. Nesse caso nós presumimos o que normalmente ocorre, que o relator tenha apreciado e tenha concluído de forma positiva. Como é que num caso, só porque passou pelo Plenário Virtual e nós não apreciamos se há ou não o capítulo, podemos julgar um recurso extraordinário em que não há, como disse em Plenário, sequer uma vírgula, num arroubo de retórica eu disse isso, sobre repercussão geral?

ConJur — O uso do Plenário Virtual tem que ser ampliado? Marco Aurélio — Não. Fui voto vencido quanto ao Plenário Virtual para essa finalidade. Passaram posteriormente a entender que poderia haver confirmação da jurisprudência num plenário virtual. Se você entende que pode haver confirmação, pode haver também suplantação. Entendo que o Plenário Virtual está, considerada a maioria, de bom tamanho e deve usar só a definição se há ou não a repercussão geral.”

ConJur — O que acha da proposta de se redistribuir o caso depois que o tribunal reconhece a repercussão geral?
Marco Aurélio — Essa é a proposta do ministro Luis Roberto Barroso, e eu não concebo termos no mesmo processo dois relatores. Um para veicular o tema no Plenário Virtual e outro para relatar, uma vez admitida a repercussão, o recurso extraordinário. Não vejo em que ponto haveria o aspecto positivo nessa dualidade
.”

ConJur — Não faria diferença? Marco Aurélio — O problema não está aí. Eu, por exemplo, me recuso a receber votos antes do pregão do processo e a remeter meus votos para os colegas. Disse outro dia, pilheriando, que eu não recebo porque sou um juiz muito sugestionável, sou muito voluntarioso. Não é o caso. Eu quero, na bancada, estar solto, sem ideia preconcebida. E se eu recebo algo já estruturado qual é a minha tendência? A lei do menor esforço, acompanhar o relator. E quero ouvir principalmente os senhores advogados, a sustentação da tribuna tem eficácia. E perceber as discussões no Plenário. O que eu noto atualmente é que a maioria já vai com o voto escrito. Eu prefiro, em termos de participação, o voto oral ou espontâneo.”

ConJur — Isso de levar o voto pronto é um fenômeno recente, não é? Marco Aurélio —  Os vogais sempre votaram no Supremo de improviso. Mesmo porque, devo confessar, não tenho tempo nem para confeccionar votos nos processos nos quais eu sou o relator, o que direi quanto a processos de colegas. A rigor se passa a ter, com confecção prévia, revisão em recurso em que não há a figura do revisor.”

ConJur — E mesmo nos votos em que o senhor é relator, o senhor vota falando num gravador, não é? Marco Aurélio — Desde 1977. Eu estava na Procuradoria do Trabalho e comecei a utilizar o Ditafone e me adaptei muito a isso. O segredo de gravar é não querer ver o que você já gravou. Se ficar retroagindo a fita você se perde, e ao invés de ganhar tempo, você perde tempo. A gravação é uma marcha. E depois que eu gravo, tem uma moça aqui no gabinete que é a moça que mais me ouve na vida, porque ela degrava, o voto vai para um setor sensível do gabinete, que é o de revisão. Lá só trabalham moças, tem uma chefe, que tem um curso superior em português, e o setor faz a revisão do estilo, substitui palavras que não foram bem percebidas pela degravadora. E com isso, enquanto eu faço cinco votos, por exemplo, de processos nos quais sou o relator, porque não faço voto prévio em processo alheio, o colega talvez não faça um digitando ou escrevendo a mão. Por isso é que eu consigo atuar e agora mesmo estou na dianteira da estatística.”

ConJur — Ano passado o senhor falou que tinha mais de 100 casos prontos pra julgar que não eram levados à pauta. Marco Aurélio — Hoje eu tenho cerca de 85 casos. Já diminuiu bem, porque o atual presidente passou a me dar preferência, porque estou na reta final para a expulsória. De qualquer forma sou o juiz que tem mais casos liberados para julgamento. Eu nunca pedi a presidente algum pra colocar na pauta um processo meu, porque eu busco tratamento igualitário dos jurisdicionados.). Fonte: Revista Consultor Jurídico, 21 de dezembro de 2014, 9h50.

Pois bem.

A questão quanto ao Supremo Tribunal Federal admitir ou não Habeas Corpus como substitutivo do recurso ordinário constitucional finalmente chegou ao Plenário da Corte (Habeas Corpus n. 113198).

Dois Ministros já se manifestaram sobre a questão: o relator, Ministro Dias Toffoli, que defende a ampla admissão na Corte dos Habeas Corpus, mesmo que substitutivos dos recursos constitucionais, e o Ministro Roberto Barroso, que considera inadequada a via processual.

Após os dois votos, o Ministro Teori Zavascki pediu vista do processo. A questão começou a ser discutida em agosto do ano passado, quando houve uma mudança de jurisprudência por parte da Primeira Turma do Supremo durante o julgamento do Habeas Corpus n. 109956, de relatoria do Ministro Marco Aurélio. Até então, ambas as turmas vinham admitindo os Habeas Corpus que tinham por objetivo substituir o recurso constitucional. O Ministro Dias Toffoli apresentou um histórico sobre o chamado ‘remédio constitucional’, lembrando que foi voto discordante na Primeira Turma quando a mesma passou a não admitir os Habeas Corpus substitutivos. Assim, ele votou pelo amplo conhecimento do pedido. O Ministro Roberto Barroso abriu a divergência quanto ao voto do relator e votou pelo não conhecimento do Habeas Corpus, considerando a inadmissibilidade por falta de previsão constitucional. Fonte: STF.

Na verdade, esta discussão começou a ser discutida quando a Turma analisou o Habeas Corpus n. 108715, durante a apresentação de uma questão preliminar no voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio. Em sua preliminar, o Ministro defendeu que a Turma não mais admitisse o uso do Habeas Corpus para substituir o Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Segundo o Ministro Marco Aurélio “o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, além de não estar abrangido pela garantia constante do inciso LXVIII do artigo 5º do Diploma Maior, não existindo sequer previsão legal, enfraquece este último documento, tornando-o desnecessário no que, nos artigos 102, inciso II, alínea “a”, e 105, inciso II, alínea “a”, tem-se a previsão do recurso ordinário constitucional a ser manuseado, em tempo, para o Supremo, contra decisão proferida por Tribunal Superior indeferindo ordem, e para o Superior Tribunal de Justiça contra ato de Tribunal Regional Federal e de Tribunal de Justiça”. E acrescentou: “o Direito é avesso a sobreposições e impetrar-se novo habeas, embora para julgamento por tribunal diverso, impugnando pronunciamento em idêntica medida implica inviabilizar, em detrimento de outras situações em que requerida, a jurisdição”. No julgamento desse Habeas Corpus (n. 108715) o Ministro Luiz Fux lembrou que assim como o Tribunal já decidiu que não cabe Mandado de Segurança como substituto de recurso ordinário, assim também deve ser para “não vulgarizar a utilização do habeas corpus”. Fonte: STF.

Após esta primeira e lastimável decisão, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal declarou extinto Habeas Corpus n. 111909 por meio do qual a defesa de um condenado por formação de quadrilha, pedia que fosse concedido a seu cliente o direito de recorrer em liberdade da sentença que fixou a pena de dois anos e oito meses de reclusão. A relatora do caso, Ministra Rosa Weber, aplicou o entendimento da Primeira Turma no sentido de não mais admitir o emprego do Habeas Corpus em substituição ao recurso ordinário constitucional: “Na esteira da nossa jurisprudência, entendo que esse habeas corpus merece ser extinto sem resolução do mérito”, afirmou a Ministra. Também no julgamento do Habeas Corpus n. 103201, os Ministros da Primeira Turma julgaram extinta a ordem por inadequação do meio processual adotado.

Igualmente, a Ministra Rosa Weber negou seguimento ao Habeas Corpus nº. 122590, pois, segundo a relatora, a jurisprudência da Primeira Turma do Supremo é no sentido de que não cabe utilização de habeas corpus como substituto de recurso. A Ministra Rosa Weber explicou que, contra a decisão do Superior Tribunal de Justiça que desproveu recurso ordinário em Habeas Corpus, existe a possibilidade de o acusado interpor recurso extraordinário, previsto no artigo 102, inciso III, da Constituição Federal. “Dada a previsão constitucional do apelo extremo, admitir o habeas corpus como substitutivo de recurso representa burla indireta ao instituto próprio, cujo manejo está à disposição do sucumbente, observados os requisitos pertinentes. Em síntese, o habeas corpus é garantia fundamental que não pode ser vulgarizada, sob pena de sua descaracterização como remédio heroico, e seu emprego não pode servir a escamotear o instituto recursal previsto no texto da Constituição”, apontou.

Pois é, lamentavelmente, mesmo o Ministro Luís Roberto Barroso aceitou esta tal (inaceitável) inadequação da via eleita para fechar os olhos a uma (única e eficaz) garantia constitucional que temos para o direito de locomoção. Igualmente o Ministro Luiz Fux, referindo-se a uma suposta vulgarização do remédio constitucional. Possivelmente quem esteja vulgarizando-se em sua função constitucional seja o próprio Supremo Tribunal Federal, o que é uma lástima!

Pontes de Miranda, se vivo, espernearia! Rui Barbosa, pior! Pedro Lessa ficaria ruborizado… Óbvio que não falarei de João Sem-Terra, nem dos barões ingleses, pois estes, muito possivelmente, não tinham ideia do bem que faziam àquela altura para a liberdade humana (Carta Magna , 1215).

É lamentável como o habeas corpus vem sendo achincalhado pelos nossos juízes, tribunais e, incrivelmente, pela Suprema Corte (veja, por exemplo, o esdrúxulo Enunciado 691 da súmula do Supremo Tribunal Federal).

Desde logo devemos atentar para a diferença abissal entre as garantias constitucionais do mandado de segurança e do habeas corpus, tendo em vista a tutela por ambos visada. Comparar jurisprudência aplicável ao mandado de segurança com o habeas corpus é olvidar os direitos por elas garantidos.

Como se sabe, o habeas corpus deve ser necessariamente conhecido e concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, pois se visa à tutela da liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica, é uma ação preponderantemente mandamental dirigida “contra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[2]

Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[3]

Aliás, desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar.

Ademais, não há falar-se em uma suposta sobreposição quando se está em jogo a presunção de inocência, que acode a todos nós. Não por menos, Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz afirmam que “(…) el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento[4]

Interessante artigo doutrinário de Renato Stanziola Vieira e Fernando Gardinali Caetano Dias, publicado sob o título “Geni”, no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRim nº. 240 (novembro de 2012), merece ser transcrito em parte: “A mera previsão de recursos cabíveis (como, por exemplo, o vetusto recurso em sentido estrito do Código de Processo Penal) nunca foi óbice às impetrações de habeas corpus. Quando não porque o constrangimento ilegal (cujas hipóteses estão previstas no art. 648 do CPP) independe de haver ou não outro recurso apto a debelar o mal, porque há situações em que existe o recurso mas não tem ele efeito suspensivo (por exemplo, o decorrente de não reconhecimento de causa extintiva de punibilidade ou, ainda, o decorrente de decisão de pronúncia). Da mesma forma, é sabido nos precedentes que matérias de direito que desafiem recursos também são cognoscíveis em habeas corpus, a depender da densidade da argumentação jurídica e da clareza da ilegalidade. Por essa perspectiva, o erro está na constatação empírica de que o manejo do habeas corpus não pode ser, de forma alguma, subsidiário, isto é, só admissível em situações nas quais não haja recurso. É irônico. Às vésperas do Ato Institucional 5, em julgamento havido pouco depois do golpe militar, dizia-se da necessidade do remédio para amparar a maldade e a injustiça. Hoje, com a Constituição em vias de completar um quarto de século, em plena democracia formal, atiram-se antigas pedras no mais importante remédio constitucional. O habeas corpus é, hoje, a Geni. Outro prisma, ainda, chama a atenção. No desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, sobretudo da segunda metade do século passado para cá, a doutrina ocidental – entre a qual, inclusive, a brasileira mais atenta – vangloria-se por compreender como cláusula inerente a todo e qualquer deles a da proibição do retrocesso. Nessa cláusula, em também muito singela lembrança, o que vale lembrar é que não se admite andar para trás, ou seja, uma interpretação que amesquinhe o direito fundamental, dando-lhe eficácia menor do que a conquistada.Por isso, além de erradas as duas decisões do Supremo, perigosamente caminham por um retrocesso na interpretação do habeas corpus.Retrocesso que advém de um raciocínio jurídico perigoso, porque limitador de acesso ao STF nas matérias que lá chegarem via habeas corpus. Veja-se: por esse entendimento, contra a denegação de ordem de habeas corpus por um Tribunal de segunda instância, o correto seria interpor recurso ordinário ao STJ (art. 105, II, a, da Constituição Federal). Se a tal recurso for negado provimento, contudo, não será possível levar a matéria ao STF, pois não cabe recurso ordinário contra acórdão denegatório de outro recurso ordinário de habeas corpus (pelo art. 102, II, a, da Carta Magna, o recurso só é cabível para habeas corpus decidido em última instância pelo Tribunal Superior).Cria-se, com isso, um claro e insuperável fator limitador de acesso ao STF, sem previsão legal. Pior: sem previsão constitucional, dada a competência estrita da Corte, advinda da Carta Maior, pois ali se prevê às claras o cabimento de habeas corpus se o “coator for Tribunal Superior” (art. 102, I, i). Talvez, com essa interpretação que parece não ter amparo na Constituição, alcance-se o objetivo de diminuir o acervo de habeas corpus na Corte Suprema. Mas o resultado se dará, inevitável e lamentavelmente, à custa da redução da própria prestação jurisdicional em afronta à competência do Supremo prevista na Constituição da República (art. 102, I, i). Havia, entre os Ministros do Supremo, quem repetisse, para a alegria dos cultores dos direitos fundamentais e do manejo do habeas corpus, que se tratava de remédio que “não pode sofrer qualquer peia”. Hoje, o bastião da liberdade do habeas corpus¸ obedecida sua história de dignidade constitucional e defesa da liberdade, passou de mão. O habeas corpus é a Geni. Talvez seja, por enquanto, aquela Geni que é boa de apanhar, boa de cuspir. O problema é que, como remédio constitucional historicamente mais importante do Brasil, o mais fundamental instrumento de garantias no processo penal, depois alguém pode sair correndo atrás do prejuízo, pedindo para ele (ou para ela, a Geni): você pode nos salvar, você vai nos redimir. Pobre liberdade, órfã do instrumento maior para garanti-la.”

O problema, no fundo no fundo, ainda é o nosso Código de Processo Penal (e não só ele, óbvio…). A propósito, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, afirma que “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) ”[5]

Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”[6] Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Como magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.”[7]

                                                           Especificamente sobre o assunto, Fabio Machado de Almeida Delmanto, lembra-nos “que o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, embora não previsto em lei, passou a ser admitido pela jurisprudência de todos os Tribunais pátrios (inclusive do STF e do STJ), em virtude da necessidade de se garantir –imediatamente e com a máxima urgência a defesa da liberdade do cidadão contra eventuais arbitrariedades ou ilegalidades perpetradas por autoridades públicas, sendo até mesmo admitido quando o autor do constrangimento ilegal for um particular (é o caso, p. ex., de uma clínica psiquiátrica que interna o paciente sem amparo na lei). (…) Por isso, em casos assim, a jurisprudência – de todos os tribunais do País, repita-se – pacificou-se no sentido de admitir o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, o qual é apresentado “no lugar” ou “em substituição” do recurso legalmente cabível (que é o recurso ordinário). Busca-se, com isso, evitar um mal maior e impedir que o constrangimento ilegal seja mantido sem um remédio ou socorro imediato, o que sem dúvida constitui um das marcas mais significativas de nosso Estado Democrático de Direito. O uso do chamado habeas corpus substitutivo de recurso ordinário é justificável, portanto, pela urgência do caso concreto e pela morosidade no trâmite do recurso ordinário (tanto na instância inferior quanto na instância superior). As principais causas de tal morosidade são as seguintes: 1) o trâmite do recurso ordinário se dá na instância em que ocorreu a ilegalidade (instância inferior), para subir ao Tribunal (instância superior) somente após o seu término; 2) durante este trâmite, a parte contrária geralmente o Ministério Público –, é chamada a apresentar contrarrazões ao recurso, o que ainda ocorre na instância inferior; 3) somente, então, o recurso ordinário é remetido à instância superior, onde será distribuído a um relator. A inexistência de liminar no recurso ordinário é, sem dúvida, outro argumento que justifica o uso imediato do habeas corpus substitutivo, em que a liminar é cabível, desde que demonstrada a manifesta ilegalidade e a urgência do caso concreto (p. ex., a prisão ilegal). A abolição do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, em prol exclusivamente do uso do recurso ordinário de habeas corpus, tal como decidido recentemente pelo STF (1.ª Turma) e seguida agora pelo STJ (5.ª Turma), trará consequências gravíssimas – e ainda incalculáveis – aos cidadãos, especialmente nos casos de patente ilegalidade na liberdade de ir e vir. Daí o grave atentado à democracia praticado pelos Tribunais Superiores. Isso porque, no caso de ser negado o habeas corpus na instância inferior, o cidadão terá que aguardar todo o trâmite do recurso ordinário, inclusive a publicação do acórdão, para somente então ingressar com o recurso ordinário, que passará por todo um trâmite na instância inferior, até chegar à instância superior, o que pode levar meses ou até anos! (…) Em poucas palavras: a abolição dos habeas corpus substitutivos de recurso ordinário reduzirá, quando muito, os processos em apenas 8,6%! Não há dúvida, portanto, de que o preço que se pagará por tal economia sobretudo sob a ótica dos direitos e garantias individuais, que é a base do nosso Estado Social e Democrático de Direito – será enorme e desproporcional, não parecendo ser esse o melhor caminho para se resolver a sobrecarga de processos nos Tribunais Superiores. Isso sem mencionar a avalanche de medidas cautelares inominadas que certamente invadirá o STF ou mesmo o STJ nos casos de urgência inadiável (prisão ilegal, p. ex.), em que o paciente não poderá aguardar todo trâmite – moroso e burocrático – do recurso ordinário na instância inferior. Por fim, a precariedade dos argumentos do STF e do STJ, data vênia, é tamanha que a jurisprudência atual desses mesmos Tribunais tem aberto exceções para conceder habeas corpus “de ofício” nos casos de patente ilegalidade e desde que o habeas corpus tenha sido protocolizado antes da mudança do entendimento jurisprudencial do STF (ou seja, antes de 07.08.2012). Ora, tal entendimento na verdade coloca em “xeque-mate” o entendimento atualmente defendido pelo STF e pelo STJ (a abolição dos habeas corpus substitutivos), pois demonstra que há situações de grave ilegalidade que precisam ser urgentemente conhecidas e solucionadas (como se diz na praxe forense, “de ofício”), não podendo aguardar o trâmite moroso e burocrático do recurso ordinário. Ora, de que forma o STF ou o STJ podem vir a conhecer da ilegalidade (a ser sanada “de ofício”), senão pelo manejo do habeas corpus substitutivo?! A abolição deste último impedirá o conhecimento da ilegalidade por parte do Tribunal, ficando a ilegalidade sem remédio algum (fato, aliás, que viola a garantia prevista no art. 5.º, inciso XXXV, da CF: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”). Por fim, rebatendo ainda o entendimento do STF e do STJ, não parece lógico, razoável nem justo separar a questão entre habeas corpus protocolizados antes e depois de 07.08.2012. A 6.ª Turma do STJ, embora no geral acompanhe o entendimento inaugurado pelo STF e acolhido integralmente pela 5.ª Turma do STJ, demonstrando sensibilidade ao tema e atenta à gravidade da mudança anunciada, abre uma exceção para admitir o enfrentamento da matéria (ainda que trazida pela via inadequada do habeas corpus substitutivo) para “fazer cessar manifesta ilegalidade que resulte no cerceamento do direito de ir e vir do paciente” (vide HC 211.806/MG, rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, j. 27.11.2012, DJe 05.12.2012). É uma luz no fim do túnel. Como dito, há casos urgentes que não podem aguardar o trâmite moroso do recurso ordinário, e precisam de solução imediata, sendo o habeas corpus substitutivo o único meio viável em nosso sistema para atender a essa urgência. Como disse o eminente advogado criminalista Dr. Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, em recente almoço realizado pelo MDA – Movimento de Defesa da Advocacia, “querem resolver a doença matando o doente”, referindo-se, é claro, às recentes decisões do STF e do STJ sobre a matéria.”[8]

James Goldshimidt[9] já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais.[10] Não vamos confundir uma garantia constitucional do porte do Habeas Corpus com uma mera outra pretensão. Leiam, então, Pontes de Miranda: “História e Prática do Habeas Corpus”, Tomos I e II, cuja última edição foi publicada pela Editora Bookseller, Campinas, em 1999. Aliás, a primeira edição desta obra é de 1916, quando o autor só tinha vinte e três anos! Mirem-se, portanto, no exemplo, como diria Chico Buarque…

Resta-nos, então, confiar que o Pleno da Corte Constitucional melhor reflita e mude esta esdrúxula orientação.

Outro assunto referido na entrevista do Ministro Marco Aurélio, foi a questão do princípio da insignificância em casos de crime de descaminho (e depois não me venham com arrependimento posterior…, pois, então, a Inês é morta![11]).

Com efeito, no julgamento do Recurso Especial nº. 1.393.317/PR, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, responsável pela fixação da jurisprudência penal da corte, decidiu que o princípio da insignificância só se aplica em casos de crime de descaminho se o valor questionado for igual ou inferior a R$ 10 mil. Assim definiu, ao julgar que o Judiciário deve seguir os parâmetros descritos em lei federal, e não em portaria administrativa da Fazenda Federal. A decisão não foi unânime, mas tomada por seis votos a quatro, seguindo o voto do relator, o Ministro Rogério Schietti Cruz.

Com esta decisão, “encerra-se um capítulo importante em uma das maiores discussões a respeito do princípio da insignificância do país. Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal têm entendimentos distintos quanto à aplicação da bagatela para o crime de descaminho. As turmas penais do Superior Tribunal de Justiça costumavam decidir em sentidos opostos, e com votações apertadas. Entretanto, as duas turmas do Superior Tribunal de Justiça entendem que a insignificância deve ser aplicada a casos em que o valor devido seja menor que R$ 20 mil.

Conforme se sabe, o valor mínimo para a execução fiscal está descrito no art. 20 da Lei nº. 10.522/2002, no qual se estabelece que a Fazenda Pública não ajuizará execução fiscal para cobrar menos de R$ 10 mil: “era com base nesse artigo que o Judiciário aplicava a bagatela para casos de crime de descaminho.

Ocorre que a Portaria nº. 75/2012 do Ministério da Fazenda atualizou aquele valor e estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada calculou “que o custo de uma execução fiscal é de R$ 5,6 mil, mas a chance de a Fazenda reaver a quantia devida é de 25%.”, concluindo        ” que só seria economicamente viável cobranças a partir de R$ 21,7 mil. Por isso a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional recalculou o valor mínimo para o ajuizamento de execução fiscal para R$ 20 mil. E foi com base nessa atualização que o Supremo passou a aplicar o teto de R$ 20 mil para recebimento de denúncias de crime de descaminho.”

Assim, por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus nº. 119.849, a 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, tendo como relator o Ministro Dias Toffoli, afirmou-se categoricamente: “no crime de descaminho, o Supremo Tribunal Federal tem considerado, para a avaliação da insignificância, o patamar de R$ 20 mil, previsto no artigo 20 da Lei 10.522/02, atualizado pelas portarias 75/12 e 130/12 do Ministério da Fazenda”.

Agora, em sentido oposto, o órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça, nas palavras do Ministro Rogério Schietti, entendeu que “a atualização do valor é uma adequação da conveniência administrativa da Fazenda para o ajuizamento de execução fiscal e adaptar essa conta à jurisdição criminal sem lei para tanto seria subordinar o Judiciário à conveniência fazendária, que se baseia em questões como economicidade e eficiência administrativas. Aplicar a insignificância ao valor descrito nas portarias seria permitir que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional diga o que a polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que — e como — o Judiciário deve julgar.”

Segundo, ainda, o voto do relator, “o fato de a Fazenda deixar de ajuizar execução fiscal não significa que ela desistiu do imposto devido. O que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional passa a fazer é usar de meios administrativos de cobrança, como a inscrição do valor (e do devedor) na Dívida Ativa da União, o que tem se mostrado bastante eficiente, principalmente para pequenos valores. Como, então, aceitar como insignificante, para fins penais, um  valor estabelecido para orientar a ação em sede executivo-fiscal, com base  apenas no custo benefício da operação, se não houve, de fato, a renúncia do tributo pelo Estado?

O Ministro Rogério Schietti Machado aproveitou o seu voto para citar estudo realizado pelo Professor Pierpaolo Cruz Bottini e pela socióloga Maria Thereza Sadek sobre a aplicação do princípio da insignificância pelo Supremo. Segundo eles, “em 86% dos casos de crime contra o patrimônio julgados entre 2005 e 2009, o valor esteve na faixa dos R$ 200. Em até 70% dos casos, a discussão envolvia bens de até R$ 100.” Neste estudo, conclui-se “que a insignificância não é reconhecida pelas turmas do Supremo Tribunal Federal quando o valor dos bens roubados ou furtados chega a R$ 700. Esses dados bem evidenciam que os crimes patrimoniais ‘de rua’ têm recebido tratamento jurídico completamente diverso e bem mais rigoroso se comparado ao que se dispensa aos crimes contra a ordem tributária e, em particular, ao crime de descaminho”, criticou o Ministro Schietti, para quem “não há, por conseguinte, razão plausível em se restringir o âmbito de proteção da norma proibitiva do descaminho (cuja amplitude de tutela alberga outros valores, além da arrecadação fiscal, tão importantes no cenário brasileiro atual), equiparando-o, de forma simples e impositiva, aos crimes tributários.” (Com informações da assessoria de imprensa do Superior Tribunal de Justiça).

Nesta discussão, entendemos que razão assiste à Suprema Corte (e não se trata de um mero argumento de autoridade, por óbvio).     O problema é que esta matéria jamais foi levada a Plenário, seja em uma Corte, seja em outra.  Em primeiro lugar, é importante deixar claro e fora de qualquer dúvida, que a aplicação do Princípio Bagatelar independe do crime supostamente praticado (e sim de sua lesividade), não importando se foi um um furto ou um crime de sonegação fiscal. Pelo menos, assim não pensou Claus Roxin quando, diante do velho adágio latino minima non curat praetor, estabeleceu as bases teóricas de tal Princípio de Direito Penal, ainda na década de 60. Aliás, este Princípio da Bagatela deriva, de certo modo, do Princípio da Adequação Social, muito antes cunhado pelo também alemão Hans Welzel.

Francisco de Assis Toledo ensina que Welzel considerava que “o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância. Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam à concepção material do tipo que estamos defendendo. Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.”[12]

                                                           Outra coisa: é preciso atentar-se, ao contrário do que ocorreu no julgamento da Corte Superior, que decisões administrativas têm sim o condão, nada obstante a autonomia das instâncias, de estabelecer balizas para o julgamento de casos criminais: se assim não o fosse, não faria qualquer sentido os termos da Súmula Vinculante nº. 24, segundo a qual “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº. 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Aliás, esta Súmula Vinculante, por óbvio, surgiu após inúmeros julgados do Supremo Tribunal Federal e do próprio Superior Tribunal de Justiça, como, por exemplo:

Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus (HC 86281 e 86489) para anular ação penal contra três empresários paulistas acusados de sonegação fiscal de cerca de R$ 60 milhões. Segundo o relator dos habeas corpus, Ministro Cezar Peluso, o STF tem jurisprudência pacífica no sentido de que não se pode alegar a existência de crime contra a ordem tributária (sonegação fiscal) quando a apuração do crédito tributário está pendente na instância administrativa.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – 06/03/2007 PRIMEIRA TURMA – HABEAS CORPUS 89.983-8 PARANÁ – RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA – Denúncia carente de justa causa quanto ao crime tributário, pois não precedeu da investigação fiscal administrativa definitiva a apurar a efetiva sonegação fiscal. Nesses crimes, por serem materiais, é necessária a comprovação do efetivo dano ao bem jurídico tutelado. A existência do crédito tributário é pressuposto para a caracterização do crime contra a ordem tributária, não se podendo admitir denúncia penal enquanto pendente o efeito preclusivo da decisão definitiva em processo administrativo. Precedentes.2. Habeas corpus concedido.

Vejamos um trecho do voto: “(…) Ao julgar o Habeas Corpus n. 81.611, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, publicado no DJ de 13.5.2005, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou que “… falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 -que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo.” (No mesmo sentido:HC 84.223, Rel. Min. Eros Grau, DJ 27.8.2004; HC 84.453, Redator para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, DJ 4.2.2005; HC 83.414, Rel.Min. Joaquim Barbosa, DJ 23.04.2004).6. Como plenamente conhecido, a administração fiscal tem competência privativa para a constituição do crédito tributário,que, de acordo com o Código Tributário Nacional, tem a sua gênese no lançamento, passível de impugnação retificadora da existência e do conteúdo da relação tributária.Conforme os precedentes apontados, a existência do crédito tributário é pressuposto para a caracterização do crime contra a ordem tributária, não se podendo admitir denúncia penal enquanto pendente o efeito preclusivo da decisão definitiva em processo administrativo de revisão do lançamento, e, muito menos, como se dá na espécie em exame, sem o devido lançamento constitutivo.Cumpre ressaltar que raciocínio diverso configuraria, no mínimo,abuso do poder de aforamento da ação penal, pois as garantias constitucionais – consubstanciadas no devido processo legal – e a legislação infraconstitucional asseguram ao cidadão mecanismos que impedem a instauração do processo criminal, tais como a extinção da punibilidade pela promoção do pagamento do tributo devido e a já mencionada decisão final na impugnação administrativa.7. Há de se ter por demonstrada, portanto, a plausibilidade do direito legalmente estatuído como fundamento para a concessão da ordem pleiteada.8. Pelo exposto, concedo a ordem de habeas corpus para anular a decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida no Recurso Especial n. 757.887, relativamente à parte que determinou o prosseguimento da Ação Penal n. 2002.70.03.014100-9, quanto ao Paciente.É como voto.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – RECURSO EM HABEAS CORPUS N.º 19.755-SP – Rel.: Min. Gilson Dipp/5.ª Turma – EMENTA – Criminal. RHC. Crime contra a ordem tributária. Trancamento do inquérito policial. Pendência de processo administrativo. Discussão sobre a exigibilidade do crédito tributário devidamente comprovada. Recurso provido. I. Hipótese na qual se sustenta a ausência de justa causa para o inquérito policial instaurado contra o paciente, em razão da pendência de processo administrativo fiscal. II. Devidamente comprovada por elementos constantes dos presentes autos a discussão sobre a exigibilidade do crédito tributário, a situação do paciente encontra guarida na nova orientação jurisprudencial da Suprema Corte, no sentido de que o processo criminal encontra obstáculos na esfera administrativa tão-somente quando se discute a existência do débito ou o quanto é devido. III. Sendo o lançamento definitivo do crédito tributário condição objetiva de punibilidade em casos de crimes contra a ordem tributária, a pendência do procedimento administrativo fiscal instaurado com o fim de apuração de tal crédito é óbice não só à instauração da ação penal, mas também do inquérito policial. IV. Deve ser determinado o trancamento do inquérito policial instaurado contra o acusado, suspendendo-se o prazo prescricional, até o julgamento final do processo administrativo. V. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.” (STJ/DJU de 20/11/06, pág. 343).

Direito Penal e Direito Processual Penal – Crimes contra a ordem tributária – Exaurimento da instância administrativa – Recurso provido. 1 – A falta de decisão final no processo administrativo, em tema de crimes contra a ordem tributária, impede a propositura da ação penal, com suspensão do prazo prescricional (Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal). 2 – Recurso provido.” (STJ – 6ª T.; RHC nº 13.569-SP; Rel. Min. Hamilton Carvalhido; j. 22/2/2005).

RECURSO EM HABEAS CORPUS N.º 17.051-SP – Rel.: Min. Nilson Naves/6.ª Turma – EMENTA – Crimes contra a ordem tributária (Lei n.º 8.137/90). Crédito tributário (exigência). Esfera administrativa (Lei n.º 9.430/96). Condição (objetiva de punibilidade). 1. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei n.º 9.430, o prevalente entendimento é o de que a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade. 2. Conseqüentemente, a ação penal pressupõe haja decisão final sobre a exigência do crédito tributário correspondente. 3. Precedentes da 6.ª Turma do Superior Tribunal. 4. Recurso ordinário provido, ressalvada, porém, outra ação penal (se for o caso).” (STJ/DJU de 19/12/05, pág. 471).

RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 17.993 – SP (2005⁄0105592-5) RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP – Devidamente comprovada por elementos constantes dos presentes autos a discussão sobre a exigibilidade do crédito tributário, a situação do paciente encontra guarida na nova orientação jurisprudencial da Suprema Corte, no sentido de que o processo criminal encontra obstáculos na esfera administrativa tão-somente quando se discute a existência do débito ou o quanto é devido. III.Deve ser determinado o trancamento do inquérito policial instaurado contra o paciente, suspendendo-se o prazo prescricional, até o julgamento final do processo administrativo. IV.Recurso provido, nos termos do voto do Relator.”

Resulta do descumprimento de condição objetiva de punibilidade a impossibilidade de instauração da ação penal por prática do crime de sonegação fiscal (crime contra a ordem tributária) e, conseqüentemente, do próprio inquérito policial enquanto não houver decisão final sobre a exigência do crédito tributário (lançamento definitivo do tributo), tal como determinado pelo art. 83 da Lei n. 9.430/1996. No caso, não houve sequer auto de infração, como demonstrado por certidão, a comprovar inexistir ainda crédito exigível. Precedentes citados do STF: ADI 1.571-1-DF, DJ 30/4/2004; do STJ: RHC 16.994-RS, DJ 28/11/2005. HC 53.033-BA, Rel. Min. Paulo Medina, julgado em 28/3/2006.” (RMS 18.832-RJ, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julgado em 28/3/2006).

Crime contra a ordem tributária – Lei nº 8.137/90, art. 1º – Lançamento fiscal: constituição do crédito fiscal. 1 – Falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da Lei nº 8.137/90, enquanto não constituído, em definitivo, o crédito fiscal pelo lançamento. É dizer, a consumação do crime tipificado no art. 1º da Lei nº 8.137/90 somente se verifica com a constituição do crédito fiscal, começando a correr, a partir daí, a prescrição. (HC nº 81.611/DF, Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, 10/12/2003). 2 – Habeas Corpus deferido.” (STF – HC nº. 85.051-1-MG; Rel. Min. Carlos Veloso; j. 7/6/2005).

RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 16.685 – AM (2004/0140966-8). RELATORA: MINISTRA LAURITA VAZ. Muito embora só se faça menção ao crime fiscal, de fato, foram os Recorrentes denunciados por outros crimes, razão pela qual não se cogita de trancar a ação penal em relação a estes. 2. Sem embargo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inaugurada com o julgamento do HC n.º 81.611/DF, a qual, inclusive, tem-se filiado este Superior Tribunal de Justiça, ao caso dos autos não se lhe aplica. 3. Malgrado o esforço de desenvolver a tese esposada, não se logrou demonstrar a existência, de fato, de processo administrativo-fiscal. Aliás, conforme esclarece o próprio causídico, ele não existe. 4. Nesse contexto, restando indemonstrado sequer a existência de processo administrativo, mostra-se insubsistente o argumento tendente a trancar a ação penal. Precedentes do STJ. 5. Recurso ordinário desprovido. VOTO: EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA): Em diligências levadas a efeito pela Polícia Federal na nomeada “Operação Zaqueu”, foram apurados fatos que apontavam para o envolvimento de empresários e auditores fiscais do trabalho em vários crimes, dentre os quais, corrupção passiva e ativa, formação de quadrilha, concussão, advocacia administrativa, lavagem de dinheiro e crimes contra o fisco. O Ministério Público Federal ofertou denúncia contra onze pessoas, dentre elas os ora Recorrentes, todos fiscais do trabalho, estes como incursos nos arts. 288, 316, caput, 317, § 1º, todos do Código Penal; art. 1º, caput, c.c. o § 4º, do mesmo artigo, da Lei n.º 9.613/98; e art. 1º, inciso I, da Lei n.º 8.137/90, c.c. os arts. 29 e 69 do Código Penal. E o réu RAIMUNDO, além desses, também como incurso no art. 321 do Código Penal. No presente recurso ordinário, pretendem o trancamento da ação penal sob o argumento de inexistência de condição objetiva de punibilidade, consoante precedentes da Suprema Corte. Muito embora os Recorrentes só façam menção ao crime fiscal, de fato, conforme acima referido, foram eles denunciados por outros crimes, razão pela qual não se cogita de trancar a ação penal em relação a estes. Quanto ao crime contra o Fisco, também não prospera a pretensão. Sem embargo da aludida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, inaugurada com o julgamento do HC n.º 81.611/DF, a qual, inclusive, tem-se filiado este Superior Tribunal de Justiça, ao caso dos autos não se lhe aplica. Compulsando os autos, verifica-se que, malgrado o esforço de desenvolver a tese esposada, o Impetrante não logrou demonstrar a existência, de fato, de processo administrativo-fiscal. Aliás, como bem destacou o acórdão recorrido: “[…] o que a jurisprudência têm rechaçado, é o oferecimento de denúncia enquanto o débito tributário estiver sendo impugnado na esfera administrativa, isto é, enquanto houver recurso da defesa pendente de julgamento, o que não é o caso pois que, como o próprio impetrante informa, ‘sequer foi instaurado processo administrativo’.” (fl. 298). Nesse contexto, em que sequer existe processo administrativo, mostra-se insubsistente o argumento. Em hipóteses similares, os seguintes acórdãos unânimes, prolatados por esta Eg. Quinta Turma: “CRIMINAL. HC. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO OBJETO DO PROCEDIMENTO TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA QUE NÃO SE VERIFICA. LEI 10.684/2003. PAGAMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. LIMINAR CASSADA. I. Hipótese em que se sustenta a ausência de justa causa para a instauração da ação penal, eis que pendente de apreciação processo administrativo fiscal. II. O impetrante não logrou demonstrar o objeto do procedimento administrativo fiscal, eis que os autos não revelam a existência de recurso ou, sequer, de impugnação, limitando-se a explicitar a tese de que a simples existência de processo administrativo fiscal impediria a instauração de processo-crime pelo eventual cometimento de crime contra a ordem tributária. III. Argumentação que não é hábil a obstar a persecução penal, pois na situação em exame não se pode auferir a apontada ausência de justa causa para a ação penal instaurada em desfavor do paciente, já que a única hipótese em que o processo criminal encontra obstáculos na esfera administrativa tributária é quando se discute o quantum debeatur, o que não se pode verificar in casu. IV. Não merece acolhida o argumento de que a instauração do processo criminal antes do esgotamento da esfera administrativa significaria a supressão do direito do paciente de obter a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, nos termos do art. 34 da Lei n.º 9.249/95, eis que o montante do débito tributário não estaria definido, pois, com o advento da Lei n.º 10.684/2003, o pagamento pode ser efetuado mesmo após a instauração da ação penal, ensejando, da mesma forma, a extinção da punibilidade. V. Ordem denegada, cassando-se a liminar anteriormente deferida.” (HC 33.234/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 06/12/2004.) “HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E ECONÔMICA. COMERCIALIZAÇÃO DE COMBUSTÍVEIS ADULTERADOS E SONEGAÇÃO FISCAL. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO SUPERVENIÊNCIA. QUESTÃO PREJUDICADA. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. ATUAÇÃO DO MP NA FASE INVESTIGATÓRIA. MATÉRIA NÃO ANALISADA PELO TRIBUNAL A QUO. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL. ART. 83 DA LEI N.º 9.430/96. PROCESSO ADMINISTRATIVO. CONDIÇÃO OBJETIVA DE PROCEDIBILIDADE. PRECEDENTE DO STF. NECESSIDADE DE ANALISE PARTICULARIZADA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. TESE SEM LASTRO CONCRETO. […] 3. É cediço que a jurisprudência reiterada deste Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a decisão final na esfera administrativa, a teor do art. 83, da Lei n.º 9.430/1996, não se constitui em condição objetiva de procedibilidade para a propositura da ação penal para apurar eventual cometimento de crime contra a ordem tributária. Tem-se sobrelevado, portanto, a independência das esferas penal e administrativa. 4. Não se desconhece, todavia, o pronunciamento recente do Supremo Tribunal Federal que, nos autos do HC n.º 81.611/DF, com sua composição renovada, por decisão plenária majoritária, reformou o entendimento até então prevalecente sobre o tema. 5. Sem embargo do precedente emanado do Excelso Pretório, a questão posta em debate merece apreciação particularizada, considerando as peculiaridades concretas de cada caso, de modo a afastar a generalização que pode acarretar conclusões distorcidas. 6. Na hipótese vertente, malgrado o esforço de desenvolver a tese esposada, o Impetrante não logrou demonstrar a existência, de fato, de processo administrativo-fiscal, em que, eventualmente, estariam sendo discutidos os diversos débitos indicados nos autos de infração aludidos na peça acusatória. Nesse contexto, restando indemonstrado sequer a existência de processo administrativo, mostra-se insubsistente o argumento que nele se lastreia. 7. Habeas corpus parcialmente conhecido, mas denegada a ordem.” (HC 27.759/GO, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 28/03/2005.) “RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SONEGAÇÃO FISCAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL EM CURSO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. NÃO-OCORRÊNCIA. EXAURIMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. IMPUGNAÇÃO NÃO DEMONSTRADA. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O trancamento da ação penal por esta via justifica-se somente quando verificadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria e prova da materialidade, o que não se vislumbra na hipótese dos autos. Precedentes. 2. Não há que se falar em inépcia da denúncia se esta satisfaz todos os requisitos do art. 41 do CPP, sendo mister a elucidação dos fatos em tese delituosos descritos na vestibular acusatória à luz do contraditório e da ampla defesa, durante o regular curso da instrução criminal. 3. Por não se prestar à valoração de matéria fático-probatória, deve o remédio heróico ser instruído previamente das provas suficientes à demonstração inequívoca da ilegalidade apontada. Precedentes. 4. Recurso a que se nega provimento.” (RHC 17.267/RS, 5ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 01/07/2005.) Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso. É o voto. MINISTRA LAURITA VAZ  Relatora. Brasília, 06 de setembro de 2005.”

A 5ª.  Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso de R. C. C. para trancar a ação penal contra ela por crime de sonegação fiscal, sem prejuízo de futura ação penal com o término do procedimento administrativo. No caso, trata-se de recurso interposto contra decisão do TRF da 3ª Região (São Paulo) que denegou habeas-corpus impetrado com o mesmo propósito de trancamento da ação penal a que responde R.C.C.  Para isso, sustentou que falta à ação justa causa, por não se poder cogitar de crime de sonegação fiscal antes do encerramento do processo administrativo, momento em que se define se o tributo é devido e qual é o respectivo quantum. Ao votar, o relator, ministro José Arnaldo da Fonseca, destacou que, na linha do que vem delineando o Supremo, somente é possível o início da ação penal em relação a crime de sonegação quando o procedimento administrativo em curso for definitivamente concluído, já que discutível, ainda, o lançamento tributário. (RHC nº 16784).

STF. HC 83.414-1/RS, Primeira Turma, Relator Ministro Joaquim Barbosa, pub. in DJ de 23/04/2004. Na linha do julgamento do HC 81.611 (rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário), os crimes definidos no art. l° da Lei 8.137/1990 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo. 2. Se está pendente recurso administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto “tributo” é elemento normativo do tipo. 3. Em conseqüência, não há falar-se em início do lapso prescricional, que somente se iniciará com a consumação do delito nos termos do art. 111, I, do Código Penal.”

HC 81.6111-8/DF. RELATOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE. Crime material contra a ordem tributária (L 8.137/90, ART 1°): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1° da L. 8137/90 — que é material ou de resultado —, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal se subtraia do Cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.”

O Ministro Cezar Peluso deferiu liminar em Habeas Corpus 86281 em que suspende ação penal contra o empresário Ibraim Borges Filho. Ele foi condenado a quatro anos e 288 dias de reclusão por crime contra a ordem tributária. De acordo com o Ministro Cezar Peluso, apesar de não ter havido auto de infração nem a apuração de débitos tributários da empresa IBF, isso não impediria uma eventual condenação. Ocorre, afirma o ministro, que a existência de simulação e conluio contra a empresa Split não foi reconhecida pelo “conselho de contribuintes”. Assim, conclui o ministro, se não há crime tributário enquanto não constituído definitivamente o crédito, “não pode havê-lo quando o crédito tributário tenha sido desconstituído pela autoridade competente”.

Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal determinou, de ofício, o trancamento de ação penal instaurada contra um publicitário acusado de suposta prática de crime de sonegação fiscal. A decisão ocorreu em sessão realizada no dia 10 de agosto de 2005 no julgamento do habeas corpus impetrado contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que havia indeferido liminar em outro HC. Inicialmente, o ministro Cezar Peluso, relator do HC, sugeriu o cancelamento da súmula 691 do STF, que estabelece não caber ao Supremo analisar habeas corpus impetrado contra decisão liminar de relator de tribunal superior. Entretanto, a maioria dos ministros entendeu que a súmula deveria ser mantida, uma vez que o seu cancelamento aumentaria os pedidos no Supremo. “A Corte é humana e com determinada capacidade de jurisdição”, afirmou Pertence, ressaltando que se o enunciado fosse cancelado, o STF teria de apreciar uma a uma as liminares indeferidas por relatores de tribunais superiores. Ao analisar o mérito, Peluso citou precedentes da Corte, entre eles, o HC 81611 de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, quando firmou o entendimento sobre a necessidade do exaurimento prévio da via administrativa como condição de procedimento de ação penal para apuração de crimes contra a ordem tributária. Assim, o relator votou pela extinção da ação penal contra Roberto Justus por falta de tipicidade e foi acompanhado pelos demais ministros. Na ação, a defesa afirmava que o suposto débito tributário do publicitário está em discussão no Conselho de Contribuintes da Receita Federal. Alegava, também, que o plenário do STF já definiu que só se pode falar em delito contra a ordem tributária quando o crédito tributário está definitivamente constituído. Dessa forma, segundo a jurisprudência do Supremo, não se permite a instauração da instância penal enquanto a instância administrativa não for esgotada. A defesa sustentava, ainda, falta de justa causa para a ação penal por não estar configurado o tipo penal da sonegação fiscal.

HABEAS CORPUS 85.428-1 MARANHÃO – RELATOR : MIN. GILMAR MENDES – A jurisprudência desta Corte já se firmou no sentido de que, quando se trata de crime contra a ordem tributária, não há causa que justifique a ação penal antes do exaurimento da esfera administrativa (HC no 81.611-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 13.05.2005). 2. Também é entendimento pacífico deste Tribunal que, enquanto durar o processo administrativo, não há cogitar do início do curso do lapso prescricional, visto que ainda não se consumou o delito (HC no 83.414-RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 23.04.2004; AI no 419.578-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 27.08.2004; e HC no 84.092-CE, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 03.12.2004). A C Ó R D Ã O: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, sob a presidência do Senhor Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Brasília, 17 de maio de 2005. V O T O: O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): Anota o parecer da Procuradoria-Geral da República (fls. 381-385), da lavra do Subprocurador-Geral, Dr. Edson de Oliveira Almeida: “O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 81.611/DF, entendeu que para o oferecimento da denúncia, por crime contra a ordem tributária, capitulado no art. 1º da Lei n.º 8.137/97, é imprescindível o exaurimento da esfera administrativa. Os extratos juntados às fls. 320-323 comprovam a existência de recursos ainda pendentes de julgamento perante o Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, referentes à empresa Assunção Indústria e Comércio S.A. Assim sendo, não pode ter curso a ação penal nº 95.00.03427-1, 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia, após o exaurimento da via administrativa, ficando, em consequência, suspenso também o curso da prescrição.” (fl. 385) Destarte, em conformidade com o parecer da PGR, entendo que, na espécie, o crime de sonegação fiscal (art. 1o, II e III da Lei no 8.137/1990) somente se consuma com o lançamento definitivo. Em  razão da pendência de recurso administrativo perante as autoridades fazendárias, não se pode falar em crime, e nem tampouco em justa causa para persecução penal. Uma vez que essa atividade persecutória se funda tão somente na existência de suposto débito tributário, não é legítimo ao Estado instaurar processo penal cujo objeto coincida com o de apuração tributária que ainda não foi finalizada na esfera administrativa. Consequentemente, não se pode sequer cogitar do curso de lapso prescricional, o qual somente terá termo inicial com a consumação do delito, nos termos do art. 111, I, do Código Penal. Nesse mesmo sentido, veja-se a recente jurisprudência firmada pelo Tribunal Pleno (HC no 81.611-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 10.12.2003, acórdão ainda não publicado, noticiado no Informativo no 333), pela Primeira Turma (HC no 83.414- RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 23.04.2004 e AI no 419.578-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 27.08.2004) e por esta Segunda Turma (HC no 84.092-CE, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 03.12.2004). No caso concreto, portanto, não existe lançamento definitivo a ensejar justa causa para o recebimento da ação penal instaurada. Destarte, reitero os fundamentos expendidos na decisão liminar, cujo teor foi integralmente apresentado no relatório do presente caso. Quanto ao mérito, meu voto é pela concessão da ordem para que se anule, desde a denúncia, inclusive, o processo criminal a que estão submetidos os pacientes (Ação Penal no 95.00.03427-1, em tramitação na 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão).

O então Presidente do Supremo, Ministro Nelson Jobim, concedeu liminar em Habeas corpus (HC 86321) a um empresário paulista para suspender ação penal por crime de sonegação fiscal. A defesa alegava a existência de procedimento administrativo ainda não julgado, o que resultaria em falta de justa causa para a instauração da ação penal. O mesmo pedido foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Ministro Jobim sustentou, ao conceder a liminar, que a jurisprudência do Supremo é no sentido de que os crimes definidos no artigo 1º da Lei nº 8.137/90 (que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo), são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo do tributo. “Assim, se está pendente o processo administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto ‘ tributo suprimido ou reduzido ‘ é elemento normativo do tipo”, ressaltou o presidente na decisão. A liminar foi concedida para suspender o andamento da ação penal nº 615/03, que tramita perante a 2ª Vara Criminal de São Carlos (SP), até decisão definitiva do habeas corpus.

O Ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento do inquérito requerido pelo Ministério Público Federal contra um parlamentar federal pela suposta prática de crime contra a ordem tributária.Segundo a assessoria de comunicação do Supremo, a Procuradoria Geral da República, em parecer, pediu o sobrestamento do inquérito, pois, o procedimento administrativo a que o parlamentar responde ainda não teria sido julgado em definitivo. O ministro Gilmar Mendes ressaltou que a jurisprudência do tribunal já se firmou no sentido de que, quando se trata de crime contra a ordem tributária, não há causa que justifique a ação penal antes do término do processo administrativo. Ele salientou, ainda, que sem o fim do procedimento administrativo não haveria o início do curso do lapso prescricional do crime tributário, visto que ainda não se consumou o delito.”Com efeito, não cabe dar prosseguimento a inquérito policial, quando não há justa causa para a ação penal, visto que a ausência de conclusão do procedimento administrativo tributário legitima o trancamento de ação penal”, afirmou o relator.O ministro salientou, no caso, o aspecto do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1o, inciso III, da Constituição, que proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. “Não é difícil perceber os danos que a mera existência de um inquérito criminal impõe ao indivíduo, especialmente quando se cuida de procedimento desproporcional ou indevido”, ressaltou Mendes.  O ministro ponderou, por fim, sobre a necessidade de prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso, para evitar os riscos que as ações ilícitas ou abusivas por parte de órgãos ou agentes do Estado podem trazer para os cofres públicos, na medida em que podem dar ensejo a pedidos de indenização fundados no princípio da responsabilidade civil do Estado (CF, artigo 37, parágrafo 6º).

Ora, então, as instâncias não são assim tão independentes!

De toda maneira, voltando a tratar do Princípio da Insignificância, observa-se, como ensina Cezar Roberto Bitencourt, que “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.”[13]

Segundo Carlos Vico Manãs, “o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção da fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal.” Para ele, tal princípio funda-se “na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.[14]

 

Para Maurício Antônio Ribeiro Lopes (a esta altura já perdoado pelo plágio cometido em relação à obra de Paulo de Souza Queiroz, pois, afinal de contas, no Brasil, ao menos em tese, não temos a pena de punição perpétua; aliás, o único que a sofreu foi o cantor, compositor e intérprete maravilhoso Wilson Simonal de Castro, de muito sucesso nas décadas de 1960 e 1970, chegando a comandar um programa na TV Tupi, Spotlight, e dois programas na TV Record, Show em Si… Monal e Vamos S’imbora, e a assinar o que foi considerado na época o maior contrato de publicidade de um artista brasileiro, com a empresa anglo-holandesa Shell. Cantor detentor de esmerada técnica e qualidade vocal, Simonal viu sua carreira entrar em declínio após o episódio no qual teve seu nome associado ao DOPS, envolvendo a tortura de seu contador Raphael Viviani. O cantor acabaria sendo processado e condenado por extorsão mediante sequestro, sendo que, no curso deste processo, redigiu um documento dizendo-se delator, o que acabou levando-o ao ostracismo e a condição de pária da música popular brasileira[15]):

O juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo.Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade. É notável a síntese apresentada por Sanguiné sobre o conteúdo da tipicidade material ao dispor que a tipicidade não se esgota na concordância lógico-formal (subsunção) do fato no tipo. A ação descrita tipicamente há de ser geralmente ofensiva ou perigosa a um bem jurídico. O legislador toma em consideração modelos de vida que deseja castigar. Com essa finalidade, tenta compreender, conceitualmente, de maneira mais precisa, a situação vital típica. Embora visando alcançar um círculo limitado de situações, a tipificação falha ante a impossibilidade de regulação do caso concreto em face da infinita gama de possibilidades do acontecer humano. Por isso, a tipificação ocorre conceitualmente de forma absoluta para não restringir demasiadamente o âmbito da proibição, razão porque alcança também casos anormais. A imperfeição do trabalho legislativo não evita que sejam subsumíveis também nos casos que, em realidade, deveriam permanecer fora do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal. A redação do tipo penal pretende, por certo, somente incluir prejuízos graves da ordem jurídica e social, porém não pode impedir que entrem em seu âmbito os casos leves. Para corrigir essa discrepância entre o abstrato e o concreto e para dirimir a divergência entre o conceito formal e o conceito material de delito, parece importante utilizar-se o princípio da insignificância“.[16]

 

Aliás, atentemos que “em tempo de pensar a gestão e a estrutura do Poder Judiciário, notadamente após a Emenda Constitucional 45, e face ao acúmulo de processo que gera insuportável morosidade aos jurisdicionados, o princípio da insignificância representa sofisticado mecanismo obstaculizador de demandas cujo custo é injustificável.”[17]

 

Ademais, é sabido desde há muito que a norma penal “existe para a tutela de alguns bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a penal.[18] Logo, alguém só “pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal.”[19] É a aplicação do princípio da ofensividade[20], segundo o qual nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria.

É de Luigi Ferrajoli a seguinte lição: “La necesaria lesividad del resultado, cualquiera que sea la concepción que de ella tengamos, condiciona toda justificación utilitarista del derecho penal como instrumento de tutela y constituye su principal límite axiológico externo. Palabras como ‘lesión’, ‘daño’ y ‘bien jurídico’ son claramente valorativas.”[21]

Ora, se a conduta do agente não lesa (ofende) o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano, ou, no máximo, um dano absolutamente insignificante, não há fato a punir por absoluta inexistência de tipicidade, pois “la conducta que se incrimine ha de ser inequivocamente lesiva para aquellos valores e intereses expresivos de genuínos ‘bienes juridicos’.[22]

Relembre-se que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, ou seja, a sua intervenção só será aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado. Paulo Queiroz, por exemplo, explica o inexpressivo sentido jurídico penal de determinadas condutas, nada obstante típicas abstratamente:

 

É que não tem o legislador, em face das limitações naturais da técnica legislativa e da multiplicidade de situações que podem ocorrer, o poder de previsão, casuística, das hipóteses efetivamente merecedoras de repressão. Noutros termos, falta-lhe o poder de prever em que grau e em que intensidade devem tais ações merecer, in concreto, castigo. Não lhe é possível, enfim, ao prever tipos abstratos, ainda que se atendo  àquelas lesões mais significativas, fixar, segundo o caso concreto, em  que intensidade a lesão deve assumir relevância penal efetiva. Com  bem assinala Maurach, nenhuma técnica legislativa é tão acabada  a ponto de excluir a possibilidade de que, em alguns casos particulares, possam ficar  fora da ameaça penal certas condutas que não apareçam como  merecedoras de pena. Vale dizer, a redação do tipo legal pretende certamente só incluir prejuízos graves à ordem jurídica e social , porém não impede que entrem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social. Enfim, o que  in abstrato é penalmente relevante pode não o ser verdadeiramente, isto é, podem não assumir, in concreto, suficiente dignidade e significado jurídico-penal.”[23]

 

Assim, impõe-se a aplicação do princípio da insignificância, pois somente as condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens jurídicos efetivamente relevantes carecem dos rigores do Direito Penal. Seu aparecimento “recomenda a aplicação do Direito Penal apenas nos casos de ofensa grave aos bens jurídicos mais importantes (principio bagatelar próprio).”[24] Já o seu fundamento “está, também, na idéia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação ao bem jurídico o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste nenhuma razão para o pathos ético da pena, de sorte que a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato.”[25]

Aliás, como dissemos acima, “el origen del estudio de la insignificancia se remonta al año 1964, cuando Claus Roxin formuló una primigenia enunciación, la que fuera reforzada – desde que se contemplaba idéntico objeto – por Claus Tiedemann, con el apelativo de delitos de bagatela.[26]

 

Como ensina Luiz Flávio, “pequenas ofensas ao bem jurídico não justificam a incidência do direito penal, que se mostra desproporcionado quando castiga fatos de mínima importância (furto de uma folha de papel, de uma cebola, de duas melancias etc.). Dogmaticamente falando, já não se discute que o princípio da insignificância (ou da bagatela, como lhe denominam os italianos, assim como Tiedemann) exclui a tipicidade, mais precisamente a tipicidade material.” Para ele, hoje, “ praticamente ninguém nega a relevância do princípio da insignificância (ou da bagatela) no direito penal. Não há dúvida que é um princípio de política criminal, mas adotado e aplicado diariamente pelos juízes e tribunais.”[27]

Este princípio também é aplicado por juízes de outros países. Para ilustrar, vejamos esta decisão da Justiça Argentina:

No toda lesión al bien jurídico propiedad configura la afectación típica requerida. En este sentido, debemos recordar que el patrimonio no es un elemento abstracto, sino un atributo de la personalidad, como tal no debe juzgarse en forma aislada, sino en relación con su titular. Lo que para uno es una afectación nimia e insignificante, para otro puede ser una afectación trascendente. Por ello el análisis de la afectación al bien jurídico no puede hacerse en forma abstracta o meramente formal. Desde el punto de vista de la teoría del delito, la afectación del bien jurídico cumple una función limitante de la tipicidad, no integrándola, de modo tal que una lesión insignificante, resultaría, por ende atípica al no revestir entidad suficiente para demandar la intervención del Estado. En este punto debemos necesariamente recordar el carácter de ultima ratio del derecho penal. El recordado Profesor Dr. Enrique García Vitor enseñaba que: el principio de insignificancia representa un criterio de índole interpretativa, restrictivo de la tipicidad de la conducta, partiendo de la consideración del bien jurídico -conceptualizado sobre la base de los principios de lesividad social y fragmentariedad-, y en la medida de su lesión o puesta en peligro concreto. No podemos descuidar aquí el aspecto político-criminal que representa la aplicación de una pena a una afectación insignificante del bien jurídico; Zaffaroni, Alagia y Slokar ponen precisamente énfasis en este punto al decir que se trata de “casos en los que la afectación es mínima y el poder punitivo revelaría una irracionalidad tan manifiesta como indignante.” (C. 28348 – “Gómez, Justo Ceferino s/ proces. y monto del emb.” – CNCRIM Y CORREC DE LA CAPITAL FEDERAL – Sala VI – 15/03/2006 – Voto do Dr. Bunge Campos).

Idem, nos Estados Unidos. Com efeito, começaram no dia 05 de novembro deste ano de 2014, na Suprema Corte dos EUA, as sustentações orais do caso de um pescador que jogou no mar três peixes com menos de 20 polegadas (pouco mais de 50 centímetros), cuja pesca é proibida, para se livrar das provas, depois que o tamanho dos peixes fora medido por um agente federal que abordou seu barco. Alguns ministros da corte ironizaram os procuradores do Departamento de Justiça por enquadrar o pescador em uma lei federal que poderia lhe render até 20 anos de prisão, por um crime tão insignificante.

O Departamento de Justiça processou o pescador John Yates, que era o capitão de barco, com base na Lei Sarbanes-Oxley, de 2002. Essa lei tipificou como crime “destruir, alterar ou esconder qualquer registro, documento ou objeto tangível, com o intento de obstruir a investigação de qualquer matéria dentro da jurisdição federal”. A lei foi criada pelo Congresso Nacional nos rastros do escândalo da empresa de energia Enron. Funcionários da empresa de auditoria Arthur Andersen foram processados criminalmente por destruir documentos que poderiam complicar a Enron na Justiça. O Defensor Público John Badalamenti, que representa Yates, alega que a lei não cobre nada mais que a destruição de provas relacionados a crimes financeiros. E que o Departamento de Justiça está “esticando demais” a lei.

Para o Departamento de Justiça, isso não é novidade. Por mais de uma década, os Procuradores Federais vêm usando essa lei para processar acusados de todos os tipos de crime: de terrorismo a violação da segurança ambiental. Os procuradores alegam que é preciso tomar o sentido pleno do texto da lei. Assim, eles dizem que um “objeto tangível” pode ser “um corpo, mancha de sangue, arma, droga, dinheiro e automóvel” — e, agora, até mesmo três peixes pequenos, de acordo a National Public Radio (NPR), a NBC News e o Washington Times.

A pergunta perante os Ministros da Suprema Corte é: “O descarte dos três peixes pequenos no mar pode ser enquadrado na Lei Sarbanes-Oxley de 2002, que proíbe a destruição de qualquer registro, documento ou objeto tangível?” Em primeiro grau, Yates foi condenado e sentenciado a 30 dias de prisão. Um tribunal de recursos manteve a condenação e o caso chegou à Suprema Corte, que aceitou julgá-lo provavelmente para discutir — em termos americanos — o princípio da insignificância.

O presidente da Corte, Ministro John Roberts, perguntou ao Procurador Roman Martinez se ele teria coragem de parar alguém na rua e perguntar se um peixe é um “objeto tangível” ou um “documento de registro”, para efeito da Lei Sarbanes-Oxley. Enquanto Martinez buscava uma resposta, o Ministro Antonin Scalia interveio, para dizer que ele não obteria uma resposta educada, informou a revista Forbes. “Que tipo de Procurador insensato processa um pescador por jogar três peixes pequenos fora do barco?”, Scalia perguntou. Quando o Procurador respondeu que a política do Departamento de Justiça é processar pessoas por crimes sérios, ele retrucou: “Nesse caso, temos de nos preocupar mais com nossas leis”. A Ministra Elena Kagan acrescentou: “Isso faz parecer que o Congresso quis estabelecer penas rígidas para qualquer pequena infração”.

John Yates pescava em “águas federais” no Golfo do México, quando o agente John Jones, que fiscaliza a pesca e a vida selvagem na Flórida, abordou seu barco. Yates havia pescado 72 badejos, três dos quais foram medidos por Jones. Como esses peixes não atingiam a medida mínima, ele ordenou a Jones que o seguisse até o porto, onde os peixes seriam apreendidos e ele seria multado — um caso semelhante a uma multa de trânsito. Em rota para o porto, Yates mandou outro pescador jogar os três peixes no mar. Quando, no porto, o agente recontou os peixes e só encontrou 69, ele percebeu a falta dos três peixes medidos. Interrogou o outro pescador e obteve a confissão de que os havia jogado no mar. Três anos depois, Yates estava em casa, quando chegaram os policiais em diversas viaturas, com coletes à prova de balas, fortemente armados, o algemaram e o colocaram em um camburão, para levá-lo para a cadeia. Depois dessa cena — e dos 30 dias na prisão —, Yates não conseguiu mais emprego, porque nenhuma empresa de pesca quer contratar alguém “com problemas com os agentes federais. Fonte: (João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos – Revista Consultor Jurídico, 6 de novembro de 2014, 10h58). Grifamos.

Apesar de fazermos todas as ressalvas do mundo à cultura (inclusive jurídico-policialesca) dos Estados Unidos da América, devemos louvar, pelo menos neste caso, a sua Suprema Corte.

É importante não confundir o princípio da insignificância com o princípio da irrelevância penal do fato: este, “está estreitamente coligado com o princípio da desnecessidade da pena”, como ensina Luiz Flávio Gomes.

Para ele, “os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, a propósito, não ocupam a mesma posição topográfica dentro do Direito penal: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque não há resultado jurídico grave ou relevante ou porque não há imputação objetiva da conduta); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto). Um afeta a tipicidade penal (mais precisamente, a tipicidade material); o outro diz respeito à (desnecessidade de) punição concreta do fato. O princípio da insignificância tem incidência na teoria do delito (aliás, afasta a tipicidade material e, em conseqüência, o próprio crime). O outro pertence à teoria da pena (tem pertinência no momento da aplicação concreta da pena). O primeiro tem como critério fundante o desvalor do resultado ou da conduta (ou seja: circunstâncias do próprio fato); o segundo exige sobretudo desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação: primário, bons antecedentes etc.), assim como o concurso de uma série de requisitos post-factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena no caso concreto (pouco ou nenhum prejuízo, eventual prisão do autor, permanência na prisão por um fato sem grande relevância etc.).Para que se reconheça esse último princípio (assim como a desnecessidade ou dispensa da pena), múltiplos fatores, portanto, devem concorrer: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos ou devolução do objeto, reconhecimento da culpa, colaboração com a justiça, o fato de o agente ter sido processado, o fato de ter sido preso ou ter ficado preso por um período etc. Tudo deve ser analisado pelo juiz em cada caso concreto. Lógico que todos esses fatores não precisam concorrer (todos) conjugadamente. Cada caso é um caso. Fundamental é o juiz analisar detidamente as circunstâncias do fato concreto (concomitantes e posteriores) assim como seu autor. O fundamento jurídico para o reconhecimento do princípio da irrelevância penal do fato reside no art. 59 do CP (visto que o juiz, no momento da aplicação da pena, deve aferir sua suficiência e, antes de tudo, sua necessidade).Mas quando o juiz reconhece o princípio da irrelevância penal do fato não está concedendo um perdão judicial extra-legal. Não é o caso. Referido princípio não é extra-legal, ao contrário, tem amparo legal expresso (no art. 59 do CP). O juiz reconhece a dispensa da pena (ele deixa de aplicar a pena) no caso concreto e isso é feito com base no art. 59 do CP (que diz que o juiz só aplica a pena quando for necessária para reprovação e prevenção do delito). A sentença do juiz, nesse caso, tem a mesma natureza jurídica da sentença que concede perdão judicial: é declaratória de extinção da punibilidade (Súmula 18 do STJ).”[28]

Para concluir: sabem como esta divergência vai acabar? Com uma Súmula Vinculante, ou seja, no pau! Vide Súmula Vinculante nº. 35 (já comentada por nós).

 

[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.

[3] Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.

[4] Derecho Processual Penal Chileno,  Tomo I,  Santiago do Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.]

[5] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[6] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.

[7] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.

[8] Boletim do IBCCrim, Ano 21, nº. 243 – ISSN 1676-3661, p. 16.

[9] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 12).

[10] Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.

[11] Conta-se que por volta do ano de 1340, o sucessor da Coroa Portuguesa, D. Pedro I, filho do Rei Afonso IV, se enrabichou com a dama de companhia de sua esposa. O nome dela era Inês de Castro. Como os pais do futuro soberano lusitano não aprovaram a diversão amorosa do filho, mandaram Inês para longe da corte, confinando-a em um castelo perto da Espanha. E para aumentar o drama, a esposa de D. Pedro I, Constança, morreu em 1345. O Príncipe, saudoso das carícias da antiga amante, desobedeceu ao Rei e mandou buscar Inês de Castro, que ficaram juntos por mais de dez anos (tiveram, inclusive, quatro filhos). Nada obstante “a união estável”, o Rei mandou três de seus conselheiros matarem Inês e a prole. D. Pedro I, apesar de irado, conformou-se. E assim se passaram mais dois anos, quando o Rei Afonso IV morreu. A partir daquele momento, o Príncipe havia se tornado o Rei de Portugal. Um de seus primeiros atos foi mandar matar os assassinos de sua amada (um deles conseguiu fugir). Logo depois, desenterrou o corpo decomposto de Inês e a posicionou no trono, obrigando toda a corte lusitana a beijar a mão da Rainha. D. Pedro I, finalmente, havia feito justiça (exercício arbitrário das próprias razões?), mas isto não adiantava para trazer Inês de volta a vida. Daí vem a expressão “agora a Inês é morta”, como referência à solução de uma situação, cujo desastre já aconteceu e, portanto, de nada mais serve, ainda que eivado de boas (ou más) intenções.

[12] Princípios Básicos de Direito Penal – Ed. Saraiva – 4a ed. – 1991 – p. 132.

[13] Manual de Direito Penal – Parte Geral – Ed. Revistas dos Tribunais – 4a ed., p. 45.

[14] O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1ª. ed., São Paulo: Saraiva, pp. 56 e 81.

[15] http://pt.wikipedia.org/wiki/Wilson_Simonal.

[16] Princípio da Insignificância no Direito Penal, 2ª. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, págs.. 117⁄118.

[17] Artigo escrito coletivamente por Salo de Carvalho, Alexandre Wunderlich, Rogério Maia Garcia e Antônio Carlos Tovo Loureiro intitulado Breves Considerações sobre a Tipicidade Material e as Infrações de Menor Potencial in AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de e CARVALHO Salo de (organizadores).  A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de administração da Justiça Criminal. Sapucaia do Sul – RS: Notadez, 2006, p. 144.

[18] Luiz Flávio Gomes, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.

[19] Idem, p. 15.

[20] Sobre o assunto, conferir a recente obra de Luiz Flávio Gomes, “Princípio da Ofensividade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

[21] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 467.

[22] Antonio Garcia-Pablos, Derecho Penal – Introducción, Madrid: Servicio Publicaciones Facultad Derecho Universidad Complutense Madrid, 1995, 265.

[23] Paulo de Souza Queiroz – Do caráter subsidiário do direito penal – Lineamentos para um direito penal mínimo, Editora Del Rey, Belo Horizonte – 1998, p.122

[24] Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira, O princípio da insignificância ou bagatela – conceito, classificação hodierna e limites, Revista Jurídica Consulex – Ano VIII – N. 186 – 15 de outubro/2004, p. 62.

[25] José Henrique Guaracy Rebelo, Princípio da Insignificância, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 38.

[26] Enrique Ulises García Vitor, La Insignificancia en el Derecho Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 20.

[27] Site: ultimainstancia.com.br – terça-feira, 9 de novembro de 2004.

[28] www.ultimainstancia.com.br – 11 de abril de 2006.


Romulo de Andrade Moreira e o Novo CPP Argentino.

A ARGENTINA JÁ TEM UM NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: E NÓS, QUANDO O TEREMOS? NUNCA, POIS O NOSSO PROCESSO LEGISLATIVO É ESQUIZOFRÊNICO, COM TODO O RESPEITO AO PORTADORES DA ESQUIZOFRENIA, QUE NÃO MERECEM TAL COMPARAÇÃO![1]

 

 

 

 

 

Por iniciativa do Poder Executivo a Argentina tem um novo Código de Processo Penal, privilegiando o sistema acusatório e dando fim (na medida do possível) aos resquícios do sistema inquisitorial do antigo ordenamento jurídico processual penal.

Com efeito, após um debate de mais de dez horas, foi aprovada por cento e trinta votos a favor, noventa e nove negativos e duas abstenções, os Deputados argentinos aprovaram o novo Código de Processo Penal.

A iniciativa do Executivo altera o sistema inquisitorial por um acusatório, dando um máximo de três anos para decidir sobre uma causa. Foi intenso o debate entre partidários do Governo e os da oposição.

Com o novo Código, o Processso Penal Argentino passa a ser muito mais transparente, dando prerrogativa ao Ministério Público de investigare deixando o Juiz, tão-somente, com a competência para a mediaçãoentre as partes (e aqui fazemos ressalvas) e decidir.

Depois de uma longa reunião, a Frente para a Vitória, juntamente com os aliados do Governo, aprovaram o projeto de lei.

Esta vitória na Câmara dos Deputados já era esperada pela oposição. O debate parlamentar começou a respeito do novo Codigo, mesmo que a agenda original tivesse como item principal a criação de uma Comissão Conjunta para investigar a fraude detectada no banco HSBC.

A oralidade, ínsita ao sistema acusatório, a transparência, a investigação criminal a cargo do Ministério Público e o papel da vítima no Processo Penal foram os eixos principais das discussões.

Aliás, a insatisfação com sistema inquisitorial foi o único ponto comum entre governo e oposição. Não havia mais.

Ao final dos debates, a Deputada Juliana Di Tullio, Presidente do bloco Frente para a Vitória pediu à oposição para abandonar seu hábito de corporações que defendem e incentivá-los a apoiar uma lei que exige a sociedade. Veementemente rejeitou a acusação da oposição que diz que o novo Código destina-se a impedir a investigação de corrupção por funcionários do governo.

Durante a discussão parlamentar a Deputada Graciela Giannettasio afirmou em seu discurso que “el nuevo sistema procesal establece una nueva organización judicial y apunta a la celeridad, la oralidad, la publicidad y a simplificar los trámites, utilizando de manera rigurosa el esquema de libertad y garantiza la vigencia de nuestros tratados internacionales.”

Outro parlamentar, Giannettasio, afirmou que já era tempo de abandonar o atual Código de Processo Penal, definido por ele “como el peor proceso de revictimización porque los que ingresan al sistema judicial no saben nunca qué pasa con la investigación; no saben cuándo va a terminar el proceso; no participan de la investigación y no tiene oralidad que es vivir degradado y no tener justicia.

Já o Deputado, tido como “radical” Manuel Garrido definiu o “CPP como una entelequia, criticando la inmediata designación de 1650 cargos en el Ministerio Público Fiscal y la imposibilidad de un control parlamentario.

Aliás, a designação de novos Promotores de Justiça foi alvo da ira de outros Deputados opositores, como Mario Negri e José Cano, que afirmaram tratar-se “de una virtual colonización de la justicia sin importar que no serán designados por el Ministerio Público Fiscal sino por concursos.

Segundo o jornalista Felipe Yapur, “cuando una sesión se extiende, el CPP consumió once horas, se produce el fenómeno de la reiteración de conceptos. La oposición no escapó a esa regla pero ante la insuficiencia de argumentos no dudó en criticar artículos que ya habían sido modificados incluso antes de que el proyecto llegase al recinto, como la conmoción social, o instalar otros temas, como hizo el radical Oscar Aguad quien anunció el fracaso de Vaca Muerta. Patricia Bullrich, en cambio, prefirió la futurología política y le auguró al CPP el mismo final que la ley de autoamnistía (del dictador Reinaldo) Bignone, la derogación. Esto provocó que el kirchnerista Jorge Rivas los calificara de ilusionistas políticos más cerca de la magia que de la realidad. El bloque del Frente Renovador, con la consuetudinaria ausencia de su jefe Sergio Massa, también se opuso al proyecto oficial. Adrián Pérez se mostró incrédulo ante el nuevo rol que se le otorga a los fiscales porque, dijo, creo en los fiscales que están en el territorio y no en Comodoro Py y a modo de ejemplo citó a José Campagnoli. Esa reivindicación no la dejó pasar el kirchnerista Remo Carlotto, quien definió a Campagnoli como un verdadero perseguidor de pibes pobres, una vergüenza para la democracia. Pablo Kosiner (FPV-Salta) aportó lo suyo al afirmar que el FR divide la sociedad en clase media y alta y el resto son delincuentes, y de nosotros dicen que representamos a los Derechos Humanos de los delincuentes. El salteño los acusó de adherir a la teoría fascista de (Cesare) Lombroso como prueba del tipo de país que pretenden. También hubo momento para gritos y discusiones. Ocurrió cuando Araceli Ferreyra (FPV-Corrientes) negó que el proyecto busque garantizar la impunidad de los funcionarios del gobierno: nosotros queremos que se investigue a todos y que no se salven ni siquiera los ladrones de guante blanco como el señor Oscar Aguad. La macrista Laura Alonso intentó callarla a los gritos. Ferreyra no se amilanó y le dijo: espero que haya algún fiscal que investigue a Alonso por los cien mil dólares que su fundación recibió del fondo buitre de Paul Singer.

                                                           O mesmo periodista notou que a Deputada Juliana Di Tullio, Presidente do bloco Frente para a Vitória advertiu que “en las 4000 cuentas del HSBC hay un solo político que pertenece a una bancada que se la pasa denunciando corrupción, a modo de nexo del tema que todavía debían debatir.  Los diputados de la Ciudad de Buenos Aires designaron sus autoridades para el período legislativo 2015. Cristian Ritondo (PRO) fue reelecto como vicepresidente primero, coordinador y administrador de la Legislatura, al igual que sus pares Juan Carlos Dante Gullo (FPV) y Maximiliano Ferraro (UNEN), que continuarán en sus actuales puestos como vicepresidente segundo y tercero respectivamente.La decisión fue tomada por una mayoría de 54 votos sobre un total de 60. Los diputados capitalinos Alejandro Bodart (MST) y Marcelo Ramal (FIT) se abstuvieron, lo mismo que los legisladores que estaban postulados para dirigir los destinos del parlamento. Ritondo, que semanas atrás se lanzó como precandidato a jefe de Gobierno para suceder a Mauricio Macri en 2016,  manejará un presupuesto de más de 600 millones de pesos para el próximo año. “Me enorgullece que la totalidad de los bloques haya reconocido, en el recinto, el trabajo realizado durante todos estos años al frente de la Vicepresidencia 2°”, comentó por su parte Gullo.”Al igual que Ritondo y Ferraro, esta ratificación me motiva a actuar con más responsabilidad, más trabajo y por sobre todo con  militancia y acercamiento con el pueblo de la ciudad de Buenos Aires”, agregó el legislador.“Lo único que se va a aplicar” a corto plazo “es el Anexo 2, que implica un incremento sustancial en la planta de funcionarios públicos designados.” Dijo que responde “responde al nefasto esquema del Ministerio Público especular”.”Todas las leyes que sancionamos en estos once años tienen que ver con los cambios que buscan que haya una justicia cada vez más cercana al pueblo. Este proyecto ayuda a superar la crisis de deslegitimación del Poder Judicial.” Fonte: http://tiempo.infonews.com/nota/139486/diputados-convirtio-en-ley-el-nuevo-codigo-procesal-penal.

Discussões argentinas à parte, e nós, quando teremos um novo Código de Processo Penal?

Como se sabe, há mais de uma década, o então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, do qual somos membros, a apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00, constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.

Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias, o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00 confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida.

Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos (todos acompanhados de uma exposição de motivos) que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei:

1º.) Projeto de lei nº. 4.209/01: investigação criminal;

2º.) Projeto de lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos;

3º.) Projeto de lei nº. 4.205/01: provas;

4º.) Projeto de lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima;

5º.) Projeto de lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade;

6º.) Projeto de lei nº. 4.203/01: júri;

7º.) Projeto de lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação.

Dois destes projetos ainda projetos continuam no Congresso Nacional. Os demais já foram convertidos em lei[2]. O nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente.

O seu surgimento, em pleno Estado-Novo[3], traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).[4]

À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.

Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…) ”[5]

Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.[6]

Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte; para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal, promulgou-se, também, o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal.

Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o genial mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (…) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (…) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[7]

Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.”

É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc.

Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 12.037/2009); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade.

Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988.

E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos (bastando citar a disciplina das nulidades[8]).

Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma que ora se avizinha a modernização do velho código e a sua adaptação ao modelo acusatório, com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, o contraditório, etc.

Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu:

Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale.

Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré.

                                                           Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[9]

Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América. Neste Código-Modelo há alguns princípios básicos, a saber:

  • O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.).

2) “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3º.).

3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem).

4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.).

Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.[10]

Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.[11]

Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático[12] evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[13]

Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (…)

Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[14]

É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, mas, como sabemos, se assim o fosse as dificuldades que já existem hoje, seriam ainda maiores. Preferiu-se, de outro modo, uma reforma que, se não chega a ser total (o que seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma reforma isolada, mas “tópica”.[15]

Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”[16], a Itália[17] e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (…) Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’, segundo nos informa a Drª. Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.[18]

O Senado Federal instituiu uma comissão de juristas para propor um novo Código de Processo Penal; a comissão pretende concluir a redação final no mês de março de 2009, para que seja submetida a consulta pública. Segundo o presidente da comissão, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido, um dos principais objetivos das propostas é o de dar maior celeridade à Justiça. Um das medidas seria o fim da participação dos juízes na tramitação do inquérito policial, o qual ficaria a cargo da autoridade policial e do Ministério Público. A diligência policial não exigiria mais autorização judicial, apenas do Ministério Público.  O Ministro Carvalhido defendeu a criação da figura do juiz de garantia, a quem caberia exercer o controle sobre a legalidade da investigação, inclusive quanto à autorização para interceptações telefônicas, solicitadas pela autoridade policial. Tal juiz sairia da causa a partir do oferecimento da denúncia, dando lugar a outro magistrado, que teria maior independência para avaliar a validade das provas colhidas no inquérito. Um dos pontos do anteprojeto, que deve despertar maior polêmica, é o fim da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, que ficaria restrita apenas a algumas autoridades. As prisões preventivas devem ter prazo máximo delimitado. “É preciso continuar essa mudança de mentalidade de ver na [prisão] preventiva uma antecipação da sanção penal, embora não haja ainda julgamento definitivo, que possa criar a certeza da aplicação da pena”, afirmou Carvalhido.O ministro considerou positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal, que garante a liberdade do acusado até que não haja condenação em última instância, com sentença transitada em julgado. Tal entendimento, segundo ele, reforça o princípio de que a prisão cautelar é de natureza excepcional. “É necessário que os direitos das pessoas sob investigação sejam respeitados, o que não significa dizer que não se pode prender cautelarmente”, ressalvou Carvalhido. Após passar pela consulta pública, o texto final do anteprojeto do Código de Processo Penal será submetido ao exame e aprovação dos senadores, para que seja transformado em projeto e vá à votação no Congresso Nacional. Além do ministro Carvalhido, integram a comissão, instituída em 9 de julho do ano pssado, o juiz federal Antônio Corrêa; o advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP) Antônio Magalhães Gomes Filho; o procurador regional da República Eugenio Pacelli; o consultor legislativo do Senado Fabiano Augusto Martins Silveira; o advogado e ex-secretário de Justiça do estado do Amazonas Félix Valois Coelho Júnior; o advogado e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; o delegado federal e presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal Sandro Torres Avelar; e o promotor de Justiça Tito de Souza Amaral (Fonte: Agência Brasil). O texto do relator, o procurador da República Eugênio Pacelli de Oliveira, assim como o PLC 111/08, deve propor a extinção da prisão especial para pessoas com diploma de nível superior, a limitação do prazo máximo para as prisões preventivas, bem como as circunstâncias em que ela pode ser utilizada. Como um texto que visa substituir integralmente o atual CPP, o anteprojeto também propõe a instituição do juiz de garantias, que participaria apenas da fase de investigação, não sendo responsável pela sentença. Segundo o consultor legislativo do Senado para as áreas de Direito e Processo Penal Fabiano Silveira, foram muitas as fontes consultadas, do Brasil e do exterior, até a comissão chegar a um anteprojeto final. Ele revelou que as recentes alterações no CPP, como as três leis sancionadas em 2008, foram preservadas naquilo que não se chocassem com a concepção de processo penal adotado pela comissão. Pela abordagem adotada, a comissão buscou delimitar o papel de cada uma das autoridades envolvidas no processo penal: o juiz, o representante do Ministério Público e o da polícia judiciária. – Estivemos sempre muito atentos para esses papéis e sua preservação, sem interferências de parte a parte. Buscamos moderar o protagonismo judicial na fase de investigação e também na iniciativa probatória na fase processual. Com essa compreensão se encaixam as propostas desenvolvidas – explicou Fabiano Silveira, adiantando ainda que o anteprojeto estimula uma aproximação entre a polícia e o Ministério Público, desburocratizando a fase do inquérito. Outra necessidade identificada pela comissão, afirma o consultor, é a de retirar resquícios autoritários do processo penal brasileiro, adequando-o ao caráter democrático e liberal da Constituição de 1988, ao mesmo tempo limitando o instituto da prisão provisória e ampliando o poder e as alternativas cautelares do magistrado. Para Fabiano Silveira, as medidas podem diminuir no país o número de prisões antes da sentença final, trazendo-o para “níveis mais aceitáveis” (Fonte: Agência Senado).

Quanto ao papel da vítima no Processo Penal, preocupação mostrada pelo legislador argentino, lembramos que a Lei nº. 11.719/2008, que entrou em vigor no dia 24 de agosto de 2008, alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal brasileiro.

A grande novidade trazida para nós foi a possibilidade de na própria sentença condenatória penal o juiz fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido” (art. 387, IV). Assim, além de aplicar a sanção penal, o Juiz criminal deverá também estabelecer a sanção civil correspondente ao dano causado pelo delito, algo semelhante ao que ocorre em alguns países, como no México onde, na lição de Bustamante, se “establece que la reparación del daño forma parte integrante de la pena y que debe reclamarse de oficio por el órgano encargado de promover la acción (o sea, que es parte integrante de la acción penal), aun cuando no la demande el ofendido.”[19]

Também “na Itália, a vítima pode ingressar no processo penal como parte privata, formando um litisconsórcio com o MP, com o fim de obter a reparação de dano. Em Portugal, o próprio MP pode requerer a reparação, nos autos do processo penal.”[20]. Conferir também, na Espanha, o art. 108 da Ley de Enjuiciamiento Criminal, in verbis:

La acción civil ha de entablarse juntamente con la penal por el Ministerio Fiscal, haya o no en el proceso acusador particular; pero si el ofendido renunciare expresamente a su derecho de restitución, reparación o indemnización, el Ministerio Fiscal se limitará a pedir el castigo de los culpables.”

Jorge de Figueiredo Dias afirma que “a natureza da reparação arbitrada em processo penal não deverá suscitar – e não tem efectivamente suscitado –fundadas dúvidas: trata-se ali de uma verdadeira e própria indemnização de perdas e danos, com natureza exclusivamente civil.”[21]

No mesmo sentido, admite-se no Direito Processual Penal Alemão o chamado processo de adesão, previsto no parágrafo 403 e seguintes do Código de Processo Penal Alemão. Aliás, comentando este dispositivo, Klaus Tiedmann afirma que este processo de adesão, “em que se decide, dentro do procedimento penal, sobre direitos indenizatórios civis da vítima, não se insere no processo penal sem causar alguma perturbação.” [22]

Disposição semelhante já tem em nosso ordenamento jurídico-penal, mais especificamente no art. 630 do atual Código de Processo Penal, quando se estabelece que na revisão criminal o “Tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos”, caso em que o acórdão constituir-se-á título judicial executório a ser liquidado na ação civil respectiva, para se definir o quantum debeatur. Na Lei nº. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), o art. 20 já estabelece que a “sentença penal condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente.”

Trata-se, evidentemente, de um julgamento extra petita autorizado (e mesmo imposto) pela lei, pois a decisão refere-se a algo que não foi pedido pelo autor na peça vestibular. Não cremos ser necessário ao acusador requerer nada neste sentido ao Juiz (ele o fará de ofício). Os elementos da peça acusatória continuam a ser aqueles do art. 41 do Código de Processo Penal.

É possível que o responsável civil não seja o réu na ação penal (por exemplo, um homicídio culposo no trânsito, praticado pelo empregado de uma empresa); neste caso, entendemos que o civilmente responsável pela futura indenização deve ser chamado ao processo, preservando-se o contraditório. Na Espanha, o art. 652 da Ley de Enjuiciamiento Criminal estabelece que, além dos acusados, deverão ser comunicados acerca do processo as “terceras personas civilmente responsables.”

Aqui, observa-se, mais uma vez, após a edição da Lei nº. 9.099/95, a preocupação em se resguardar os interesses da vítima no processo penal.  Nota-se, com Ada, Scarance, Luiz Flávio e Gomes Filho que esta lei insere-se “no generoso e atualíssimo filão que advoga a revisão dos esquemas processuais de modo a dar resposta concreta à maior preocupação com o ofendido.”[23]

García-Pablos, por exemplo, informa que “o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos (…). O Direito Penal contemporâneo – advertem diversos autores – acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual”.[24]

A própria legislação processual penal relega a vítima a um plano desimportante, inclusive pela “falta de mención de disposiciones expressas en los respectivos ordenamientos que provean medidas para salvaguardar aquellos valores ultrajados”.[25]

Esta atenção com a vítima no processo penal é tema atual e tem sido motivo de inúmeros trabalhos doutrinários, como observou o jurista argentino Alberto Bovino:

Después de varios siglos de exclusión y olvido, la víctima reaparece, en la actualidad, en el escenario de la justicia penal, como una preocupación central de la política criminal. Prueba de este interés resultan la gran variedad de trabajos publicados recientemente, tanto en Argentina como en el extranjero;” (…) mesmo porque “se señala que com frecuencia el interés real de la víctima no consiste en la imposición de una pena sino, en cambio, en ‘una reparación por las lesiones o los daños causados por el delito’[26] Neste sentido, veja-se obra bastante elucidativa de Antonio Scarance Fernandes.[27]

Dois juristas italianos, Michele Correra e Danilo Riponti, também anotaram:

Il recupero della dimensione umana della vittima, molto spesso reificata, vessata, dimenticata da giuristi e criminologi in quanto oscurata da quella cosí clamorosa ed eclatante del criminale, soddisfa l’intento di rendere giustizia a chi viene a trovarsi in una situazione umana tragica ed ingiusta, a chi ha subito e subisce e danni del crimine e l’indifferenza della società.[28]

Agora, por força do novo dispositivo, acrescentou-se um parágrafo único ao art. 63, nos seguintes termos: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.

A questão reside em saber se em relação aos autores de crimes praticados anteriormente à vigência do art. 387, IV pode o Juiz de Direito fixar o valor mínimo para a reparação dos danos.

Para que se manifeste um entendimento correto, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma ora revogada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há falar-se em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade do artigo alterado e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal.

Pois bem.

A Constituição Federal estabelece no art. 5º., XLV que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.”

Esta matéria também é tratada no art. 91 do Código Penal, nestes termos:             “São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.”

Outrossim, no Código Civil temos os seguintes dispositivos, todos igualmente pertinentes a esta questão:          “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.”

Ora, nada obstante o caráter eminentemente processual de um dispositivo legal que estabeleça o conteúdo de uma sentença condenatória, entendemos que o fato da lei também prescrever que dentre os requisitos integrantes da decisão está a questão da reparação do dano (que é induvidosamente de Direito Material, como demonstrado acima com a transcrição do texto constitucional e do Código Civil), torna-o uma norma processual penal material.

É norma jurídica de Direito Processual, pois trata da decisão final a ser proferida em um processo, sem, no entanto, deixar de ser uma norma de Direito Material, visto que também trata de matéria atinente a Direito Civil e ao próprio Direito Constitucional. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.

O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[29]

Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.” Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[30] (grifo nosso).

Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[31]

Feitas tais considerações, lembra-se que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[32] A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano:

Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[33]

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:

Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[34]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:

Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.[35]

No sentido do texto, vejamos dois julgados do Tribunal Federal de Recursos da 1ª. Região:

Em observância ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, XL, da CF/88), inviável a incidência do regramento do art. 387, IV, do CPP (que possui nítido caráter material), ao caso concreto, pois que os fatos delitivos ocorreram no período compreendido entre julho/2004 à set/2004 e a Lei 11.719/2008, que deu nova redação ao mencionado artigo, conferindo a possibilidade de o julgador, na esfera criminal, fixar valor mínimo para reparação de danos, passou a vigorar no ano de 2008, de modo que dito preceito não pode alcançar os processos em andamento, como na hipótese. 6. Apelação parcialmente provida, apenas para reduzir a pena imposta à acusada e afastar a fixação do valor mínimo de indenização em favor do INSS.” (ACR 200638000115549, Juiz Tourinho Neto – 14/05/2010).

Exclusão da condenação por reparação do dano, com base no art. 387, IV, do CPP, introduzido pela Lei 11.719, de 20/06/2008, eis que, na data do fato – 29/07/2008 – ainda não tinha eficácia a Lei 11.719, de 20/06/2008, publicada no DOU de 23/06/2008, que só entrou em vigor 60 dias após sua publicação, consoante o seu art. 2º, não podendo tal disposição retroagir, para prejudicar o réu-apelante.” (ACR 200841000075895, Juíza Federal Assusete Magalhães, 14/01/2011).

Assim, considerando “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio[36], entendemos que o inciso IV do art. 387 do Código de Processo Penal terá incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal posteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto nos arts. 2º. e 4º., ambos do Código Penal.[37]

 

Não é apenas o fato de uma norma está contida em um Código de Processo Penal que a sua natureza será estritamente processual (e dever ser aplicada a regra do tempus regit actum). Como afirmava Vicenzo Manzini, “estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.[38]

 

Enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º. do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal (leia-se: material) que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 17 de dezembro de 2014 excluir da condenação imposta a um ex-Deputado Federal Natan Donadon o valor mínimo da reparação fixado na sentença penal por conta dos danos causado pelo crime de peculato. Isso porque, ao condenar o ex-parlamentar na análise da Ação Penal 396, em outubro de 2010, pelos crimes de formação de quadrilha e peculato, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o réu teria que restituir aos cofres públicos do Estado de Rondônia pouco mais de R$ 1,6 milhão.A decisão foi tomada no julgamento da Revisão Criminal nº. 5437, ajuizada na Corte pela defesa contra a condenação do parlamentar. O relator negou quase todos os pedidos da defesa, votando pelo provimento da revisão criminal somente em um único ponto: a fixação da reparação mínima devida pelo condenado. De acordo com o ministro, esse ponto da sentença estaria baseado no que prevê a Lei 11.719/2008, que alterou o artigo 387 do Código de Processo Penal (incluindo o inciso IV) para permitir ao juiz que profere a sentença condenatória penal a fixação da reparação mínima devida pelo sentenciado. Para Teori Zavascki, no caso concreto, a norma em questão é posterior aos fatos apurados e à própria deflagração da ação penal, e não poderia retroagir para atingir o réu.Ao concluir seu voto, o ministro entendeu que a reparação deve se dar pelas vias adequadas, em ação independente, como ocorria antes da edição da Lei 11.719/2008. Acompanharam o voto do relator, no sentido da procedência parcial, os ministros Luís Roberto Barroso (revisor), Rosa Weber, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, sendo que o ministro Marco Aurélio também dava provimento para afastar a competência do STF para julgar a ação penal, por conta da renúncia do parlamentar antes do julgamento, em outubro de 2010. O ministro Roberto Barroso frisou em seu voto que, além da questão da não retroatividade da lei posterior, no caso concreto o condenado não teve direito ao contraditório com relação à fixação do quantum indenizatório.Os ministra Carmen Lúcia e os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram pela total improcedência da revisão criminal.

Em relação à investigação criminal direta pelo Ministério Público, a discussão é mais acalorada, especialmente aqui no Brasil.

O tema em epígrafe diz respeito a uma das mais importantes atribuições do Ministério Público e, muitas das vezes, de fundamental importância para a persecução criminal: a investigação de infrações penais. Nada obstante opiniões em contrário, o certo é que tal atribuição transparece suficientemente possível à luz da Constituição Federal e de textos legais, como procuraremos demonstrar a seguir. Desde logo, atentemos que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da Constituição Federal). Parece-nos ser este um grande indicativo do que acabamos de afirmar. Com efeito, diz o art. 129 da Constituição Federal que são funções do Ministério Público, dentre outras:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.” (grifo nosso).

VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.” (grifo nosso).

VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX – exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.” (idem).

Como se nota pelo inciso I acima transcrito, a Carta Magna deu ao Ministério Público, com exclusividade, a titularidade da ação penal pública e, como diz Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, “não seria razoável que a Constituição concedesse o direito de ação[39] com uma mão e retirasse os meios de ajuizá-la adequadamente com a outra. Por isso, deve-se admitir que o Ministério Público possa colher os elementos de convicção necessários para que sua denúncia não seja rejeitada.”[40]

Aqui, acolhemos a teoria dos poderes implícitos, na forma explicada pelo Ministro Celso de Mello:

“(…) Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional – e não aos processos de elaboração legislativa – assinala que, ´Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos` (grifei). Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 641/650, 1943, Forense) – deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI BARBOSA (Comentários à Constituição Federal Brasileira, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes implícitos – após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES MADISON e de JOÃO BARBALHO – assinala: ´Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que – em se querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas funções. (…). Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular. Este, o princípio; esta, a regra. Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte – o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (…).” (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2 – Distrito Federal).

No inciso II, permite-se a promoção de medidas que sejam necessárias para a garantia dos direitos assegurados por ela própria que não estejam sendo respeitados pelos Poderes Públicos e pelos serviços de relevância pública; assim, por exemplo, quando um agente público, abusando de poder ou de sua autoridade, transgride o direito à liberdade de um cidadão, verbi gratia, prendendo-o ilegalmente, é evidente que permitido será ao parquet, constitucionalmente, “promover medidas necessárias para a garantia do direito à liberdade” desrespeitado pelo agente do Poder Público.

Já o inciso VI, refere-se expressamente à expedição de notificações “nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los.” Pergunta-se: para que serviriam tais notificações ou as informações e os documentos requisitados se não fossem para instruir procedimento administrativo investigatório? É evidente que nenhuma lei traz palavras ou disposições inúteis (é regra de hermenêutica), muito menos a Lei Maior.

Comentando este inciso, afirma Marcellus Polastri Lima:

Trata-se, à saciedade, de coleta direta de elementos de convicção pelo promotor para elaborar opinio delicti e, se for o caso, oferecimento de denúncia, uma vez que, como já asseverado, não está o membro do Ministério Público adstrito às investigações da Polícia Judiciária, podendo colher provas em seu gabinete ou fora deste, para respaldar a instauração da ação penal.

                                                           Portanto, recebendo o promotor notícia de prática delituosa terá o poder-dever de colher os elementos confirmatórios, colhendo declarações e requisitando provas necessárias para formar sua opinio delicti.”[41]

Que não se diga tratar-se tal procedimento administrativo do inquérito civil preparatório para a ação civil pública, pois desta matéria já cuida o anterior inciso III. Portanto, este outro dispositivo (VI) ao se referir a “procedimentos administrativos” não faz alusão ao inquérito civil (que também é um procedimento administrativo), este já tratado no item anterior; neste mesmo sentido pensa Hugo Nigro Mazzilli, para quem “se os procedimentos administrativos a que se refere este inciso (VI) fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inciso III. O inquérito civil nada mais é que uma espécie de procedimento administrativo ministerial. Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível; atinge também a área destinada a investigações criminais.”[42]

Já com o inciso VIII surge a seguinte indagação: se se pode o mais (requisitar diligências investigatórias), como não se pode o menos, id est, fazê-las motu proprio. Aqui devemos aplicar o princípio da máxima efetividade, ou da eficiência, também conhecido como princípio da interpretação efetiva, segundo o qual “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.”[43]

Se não bastassem tais preceitos há ainda o quarto deles consubstanciado no inciso IX, este a permitir o exercício de funções outras que forem atribuídas ao Ministério Público e que sejam compatíveis com suas finalidades: a Lei Federal n.º 8.625/93 concede ao Ministério Público a possibilidade de instaurar procedimentos administrativos investigatórios, como veremos a seguir.

Efetivamente, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica da Instituição), no seu art. 26, dispõe caber ao Ministério Público (os grifos são nossos)[44]:

I – instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: (omissis);

II – requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;

V – praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório;

Comentando este artigo, e mais especificamente o seu inciso V, assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain:“Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subseqüente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta conseqüência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.” (Grifo nosso).[45]

Por sua vez, adverte Marcellus Polastri Lima:“A exemplo do disposto na CF/88, entendemos que o estabelecido no item I do art. 26 da Lei 8.625/93, refere-se não só aos inquéritos civis, como a quaisquer outros procedimentos, sendo a expressão pertinente atinente a medidas e procedimentos condizentes com as funções do Ministério Público, e não somente aos inquéritos civis, conforme estabelecido no caput do art. 26.”[46]

Ainda mais recentemente escreveu Paulo Rangel:“A investigação criminal direta pelo Ministério Público é garantia constitucional da sociedade que tem o direito subjetivo público de exigir do Estado as medidas necessárias para reprimir e combater as condutas lesivas à ordem jurídica.”[47]

Em um outro trabalho específico, temos a opinião de Mauro Fonseca Andrade:        “Sem sombra de dúvidas, a possibilidade do Ministério Público investigar criminalmente decorre das previsões da legislação pátria, que, ainda, dá margem às investidas daqueles que pretendem engessar o Parquet , e torná-lo dependente do trabalho que a polícia judiciária realizar.”[48]

 

Continuando a análise da Lei Orgânica temos no seu art. 27, verbo ad verbum (por nós sublinhado):

Art. 27 – Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito:

                                                           I – pelos poderes estaduais e municipais;

                                                           II – pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta;

                                                           “(omissis).

Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências:

                                                           I – receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas;

                                                           II – zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos;

                                                           “(omissis).”

Vemos, destarte, que não há dificuldades em se admitir a instauração de procedimentos administrativos investigatórios de natureza criminal no âmbito do próprio Ministério Público, desde que haja a necessidade da apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque institucional das atribuições ministeriais.

Portanto, não podemos conceber, em que pese a autoridade dos que pensam contrariamente, que se diga ser defeso ao Ministério Público a investigação e a coleta de provas para o processo criminal (inclusive, como é evidente, a notificação para comparecer), pois tal atribuição é permitida perfeitamente, principalmente levando-se em conta a lição doutrinária amplamente conhecida, segundo a qual o inquérito policial é peça prescindível à instauração da ação penal, conclusão esta retirada do próprio Código de Processo Penal, arts. 4º., parágrafo único, 12, 27, 39, § 5º. e 46, § 1º.

Com razão afirma Mazzilli:    “Tanto na área cível como criminal, admitem-se investigações diretas do órgão titular da ação penal pública do Estado. Para fazê-las, não raro se valerá de notificações e requisições.”[49] E, complementa: “Em matéria criminal, as investigações diretas ministeriais constituem exceção ao princípio da apuração das infrações penais pela polícia judiciária; contudo, há casos em que se impõe a investigação direta pelo Ministério Público, e os exemplos mais comuns dizem respeito a crimes praticados por policiais e autoridades.[50]

De lege lata, podemos citar, inclusive, dois dispositivos legais que expressamente legitimam o Ministério Público para atividades investigatórias; o primeiro deles é o art. 179 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90), in verbis:

Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.”

O segundo encontra-se no Estatuto do Idoso – Lei nº. 10.741/03:

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

(…)

V – instaurar procedimento administrativo e, para instruí-lo:a) expedir notificações, colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado da pessoa notificada, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar;b) requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias;c) requisitar informações e documentos particulares de instituições privadas;

VI – instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, para a apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção ao idoso;

(…)

IX – requisitar força policial, bem como a colaboração dos serviços de saúde, educacionais e de assistência social, públicos, para o desempenho de suas atribuições;

Costuma-se opor ao entendimento acima esposado o art. 144, § 4º. da Constituição Federal, cuja redação diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União.

Ocorre que tal atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil (nem da Federal[51]), sendo esta a correta interpretação deste dispositivo constitucional.

Não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas.

Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[52]

A propósito, Karl Larenz, após advertir que se aplicam os princípios interpretativos gerais das leis também à interpretação da Constituição, ensina que “o contexto significativo da lei determina, em primeiro lugar, da mesma maneira, a compreensão de cada uma das frases e palavras, tal como também, aliás, a compreensão de uma passagem do texto é codeterminada pelo contexto.” Esclarece este autor que “uma lei é constituída, as mais das vezes, por proposições jurídicas incompletas – a saber: aclaratórias, restritivas e remissivas -, que só conjuntamente com outras normas se complementam numa norma jurídica completa ou se associam numa regulação. O sentido de cada proposição jurídica só se infere, as mais das vezes, quando se a considera como parte da regulação a que pertence.”[53]

Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.”[54]

Partindo-se desse pressuposto, resta claro que não deu a Constituição exclusividade na apuração de infrações penais apenas a uma Instituição. Observa-se que um outro artigo da mesma Carta (art. 58, § 3º.) dá poderes às Comissões Parlamentares de Inquérito para investigação própria e, adiante, como já demonstrado, concede a mesma prerrogativa ao Ministério Público. Não nos esquecemos que ao conceder exclusividade ao Ministério Público para a propositura da ação penal pública (art. 129, I), a Constituição Federal implicitamente outorgou à Instituição a possibilidade de investigar para respaldar a respectiva peça acusatória.

Lênio Luiz Streck e Luciano Feldens escreveram: “Recorrentemente, aqueles que desafiam a legitimidade do Ministério Público para proceder a diligências investigatórias na seara criminal esgrimem o argumento de que tal possibilidade não se encontraria expressa na Constituição, locus político-normativo de onde emergem suas funções institucionais. Trata-se, na verdade, de uma armadilha argumentativa. Esconde-se, por detrás dessa linha de raciocínio, aquilo que se revela manifestamente insustentável: a consideração de que as atribuições conferidas ao Ministério Público são taxativas, esgotando-se em sua literalidade mesma. Equívoco, data venia, grave.[55]

Ainda bem a propósito, veja-se a lição de Diego Diniz Ribeiro:      “Sendo assim, respaldando-se na teoria dos poderes implícitos, conclui-se que, se o constituinte atribuiu a uma determinada instituição uma atividade-fim, também está ele, ainda que implicitamente, outorgando-lhe a atividade-meio, pois, do contrário, aquela atividade restaria prejudicada, não passando a disposição legal que a previu de uma determinação vazia e sem efetividade prática. Sendo assim, de tal assertiva se extrai a conclusão lógica de que se o parquet pode o mais, que é a interposição da ação penal pública, também pode ele, ainda que de forma implícita, o menos, qual seja, a investigação criminal pré-processual, pois, do contrário, o permissivo constitucional que outorga ao MP a função titular da ação penal seria totalmente inócuo, não passando de mero discurso retórico.” (Boletim do IBCCrim nº. 121, dezembro/2002).

A esse respeito escreveu Tourinho Filho:“O parágrafo único do art. 4º. (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à Polícia (investigar crimes) não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras possam, também, dentro em suas respectivas áreas de atividades, proceder a investigações. As atinentes à fauna e flora normalmente ficam a cargo da Polícia Florestal. Autoridades do setor sanitário podem, em determinados casos, proceder a investigações que têm o mesmo valor e finalidade do inquérito policial.”[56]

Da mesma forma pensa o já citado Marcellus Polastri Lima:            “Obviamente, não sendo a Polícia Judiciária detentora de exclusividade na apuração de infrações penais, deflui que nada obsta que o MP promova diretamente investigações próprias para elucidação de delitos.Como já salientamos, de há muito Frederico Marques defendia que o MP poderia, como órgão do Estado-administração e interessado direto na propositura da ação penal, atuar em atividade investigatória.O art. 4º. do CPP já dispunha, em seu parágrafo único, inteiramente recepcionado pela nova ordem constitucional, que a atribuição para apuração de infrações penais não exclui a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a função.”[57] (grifo nosso).

 

Neste sentido, veja-se o Enunciado 397 da súmula do Supremo Tribunal Federal[58], com base no qual o Senado Federal editou a Resolução nº. 59/2002, regulamentando o art. 52, XIII, da Constituição Federal, cujo art. 2º., § 1º., IX, estabelece que “são consideradas atividades típicas de Polícia do Senado Federal”, dentre outras, “as de investigação e de inquérito.”

O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 1517 (tendo como requerente a ADEPOL – Associação dos Delegados de Polícia do Brasil), tendo como Relator o Ministro Maurício Corrêa, em julgamento do dia 30 de abril de 1997 (DJ de 22/11/2002, p. 55), expressamente deixou consignado em determinado trecho que “competindo ao Judiciário a tutela dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição, não há como imaginar-se ser-lhe vedado agir, direta ou indiretamente, em busca da verdade material mediante o desempenho das tarefas de investigação criminal, até porque estas não constituem monopólio do exercício das atividades de polícia judiciária.” (Informativo STF nº. 69, de 07 de maio de 1997, p. 02, com grifo nosso).

Ainda no Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus nº. 83157, em 1º.de julho de 2003, foi suscitado o papel do Ministério Público nas investigações criminais. O Ministro-Relator, Marco Aurélio, entendeu que a instituição não tem poderes para tomar depoimentos e conduzir as investigações em matéria criminal, somente podendo agir assim nos inquéritos de natureza civil, conforme prevê a Constituição Federal. Na oportunidade, o Procurador-Geral da República, Dr. Claudio Fonteles declarou que “não há ilegalidade alguma em um procurador da República tomar o depoimento de alguém no seu gabinete. É até melhor que assim seja do que em delegacia de polícia. As razões são óbvias”. Segundo o chefe do Ministério Público Federal, o parquet tem legitimidade para investigar fatos criminosos, “e isso não significa dizer que termina o serviço da polícia”, devendo esta atividade “ser sempre controlada pelo Poder Judiciário”. Ainda nesta sessão, o Ministro Marco Aurélio destacou em seu voto o posicionamento da 2ª Turma da Suprema Corte que entendeu somente caber ao Ministério Público “promover o inquérito civil”. Segundo o Relator, “como titular da ação penal pública, acusador, impossível é conferir atividade investigatória, a presidência de audiências para a oitiva de testemunhas. Há de lançar mão, o Ministério Público, do que previsto no inciso VIII, do artigo 129, da Constituição Federal, requisitando ‘diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de manifestações processuais”. A ministra Ellen Gracie acompanhou o voto do Relator, acrescentando que ao Ministério Público cabe promover a investigação quando se trata de inquérito civil, “não devendo o mesmo acontecer no inquérito penal, onde atuará, mais tarde, como acusador”. Para a Ministra o Ministério Público não pode acumular essas duas tarefas: a de acusador e a de inquisidor. Nesta oportunidade, colheu-se também o voto do Ministro Carlos Velloso que ressaltou “não considerar ilegal o fato de a testemunha ter prestado o seu depoimento perante o membro do Ministério Público”. Para este Ministro, “não obstante a importância do Ministério Público no contexto social, pensa que as investigações correm por conta da polícia. É o que está na Constituição, mas não chego ao ponto de impedir que o Ministério Público em certos casos, como neste, tome o depoimento de alguém e oriente as provas em que ele vai se basear para oferecer a denúncia e instaurar a ação penal da qual participou.” Também em sentido oposto à tese do Relator, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou não concordar com a ilegitimidade do Ministério Público para atuar nas investigações criminais. Segundo ele, “a Constituição não criou o Ministério Público para ser um órgão inerte”, logo “deve investigar sempre que fatos delituosos chegarem ao seu conhecimento”.

Também em decisão unânime, a Segunda Turma do Supremo Tribunal indeferiu Habeas Corpus (HC 84965) que pedia o trancamento de ação penal instaurada na Comarca de Matias Barbosa (MG) contra servidores públicos estaduais e outros acusados de crimes contra a ordem tributária (artigo 1º, IV, e artigo 3º, II, da Lei 8.137/90) e formação de quadrilha (artigo 288 Código Penal). O andamento do processo estava suspenso por força de liminar concedida pelo ministro Cezar Peluso. Com o entendimento firmado nesta tarde, essa liminar perdeu efeito e a ação penal voltará a tramitar normalmente. A decisão seguiu voto do ministro Gilmar Mendes, relator do processo. Os advogados argumentaram que a ação penal deveria ser trancada (encerrada) porque estaria fundamentada apenas em Procedimento Administrativo Criminal instaurado internamente pelo Ministério Público mineiro, por meio de portaria da Promotoria de Justiça de Combate ao Crime Organizado. Segundo eles, esse fato tornaria a denúncia nula.O relator, no entanto, afirmou que o caso em questão “parece justificar” a atuação do Ministério Público. “No caso concreto, constata-se situação excepcionalíssima, que, a meu ver, justifica a atuação do Ministério Público na colheita de provas que fundamentam a ação penal”, ressaltou o ministro Gilmar Mendes.“É uma situação extremamente complexa, que a Corregedoria da Fazenda (de Minas Gerais) indicava, com participação possível de servidores e policiais militares. Então, é um caso que parece justificar essa atuação”, disse. “Não vejo nulidade na atuação investigativa do Ministério Público, nos termos em que ela se deu no presente caso”, concluiu o ministro. Ao longo de seu voto, o ministro Gilmar Mendes fez amplas reflexões sobre a possibilidade ou não de o Ministério Público realizar investigações. Ele lembrou que o tema está em votação no Plenário do Supremo, mas que, “enquanto não sobrevier uma decisão estabelecendo os exatos contornos e limites dessa atividade, é lícito ao MP investigar, obedecidos os limites e os controles ínsitos a essa atuação”.O ministro advertiu que a atividade investigatória não é exclusiva da polícia judiciária e citou vários órgãos com poderes para tanto, como o Coaf, a Receita Federal, entre outros. “O próprio constituinte originário, ao delimitar o poder investigatório das comissões parlamentares de inquérito, pareceu encampar esse entendimento”, disse. Ele classificou como “forma tacanha de hermenêutica constitucional” qualquer leitura que extraia uma “não decisão, um silêncio eloquente” diante de decisões explícitas do texto constitucional. “Ao permitir isto (a investigação policial), está a se proibir aquilo (a investigação do MP). Essa é uma interpretação literal empobrecida (da Constituição)”, afirmou.Entretanto, o ministro Gilmar Mendes advertiu que o poder de investigar do MP não pode ser exercido “de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena da agredir inevitavelmente direitos fundamentais”. Como exemplo, ele lembrou que o inquérito policial também foi concebido como um instrumento de garantia do acusado. “Não obstante a ausência de contraditório, não deixa o inquérito policial de representar um procedimento legal de mediação entre o interesse do acusado e o direito de punir do Estado.” Assim, explicou, o inquérito assegura garantias mínimas ao acusado, tais como prazos, a supervisão judicial, a ciências das partes, a possibilidade de acompanhamento por meio de advogado, entre outros.Para o ministro Gilmar Mendes, o tema do poder de investigação do MP comporta e reclama a disciplina legal para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. “É que esse campo tem se prestado ao abuso. Tudo isso é resultado de um contexto da falta de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público”, afirmou. De toda forma, o ministro avalia que “a ausência de uma disciplina normativa não invalida toda e qualquer atuação do Ministério Público, especialmente se ligada a elementos probatórios já existentes”.

Aliás, de há muito o Supremo Tribunal Federal admitiu a não exclusividade das apurações de infrações penais por parte da Polícia, quando, por exemplo, sumulou o seguinte entendimento: “O poder de polícia da Câmara dos deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito” (Súmula 397).

E não se diga que, sendo parte, não pode o Promotor de Justiça ser considerado autoridade para efeito de instauração de procedimento administrativo na forma permitida pelo parágrafo único do art. 4º. do Código de Processo Penal; tal argumento também é rebatido pelo autor por último citado, ao afirmar, depois de se apoiar nas lições de Hely Lopes Meirelles, que: “Não resta dúvida que, estando o Ministério Público regido por lei orgânica própria, detendo funções privativas constitucionalmente e possuindo seus agentes independência funcional, além de preencher os demais requisitos elencados pela doutrina, os seus membros são agentes políticos, e como tal exercem parcela de autoridade.”

Portanto, indubitavelmente, exerce o MP parcela de autoridade e, administrativamente, pode proceder às investigações penais diretas na forma da legislação em vigor.”[59]

Mirabete não pensava diferente: “Os atos de investigação destinados à elucidação dos crimes, entretanto, não são exclusivos da polícia judiciária, ressalvando expressamente a lei a atribuição concedida legalmente a outras autoridades administrativas (art. 4º., do CPP). Não ficou estabelecido na Constituição, aliás, a exclusividade de investigação e de funções da Polícia Judiciária em relação às polícias civis estaduais. Tem o Ministério Público legitimidade para proceder investigações e diligências, conforme determinarem as leis orgânicas estaduais”, citando, então, várias hipóteses em que outras autoridades administrativas, que não Delegados de Polícia, podem e devem proceder a investigações: as referidas Comissões Parlamentares de Inquérito, a Lei nº. 4.771/65 – Código Florestal (art. 33, b), o art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, etc.[60]

Espínola Filho, por sua vez, já advertia há muito “que o inquérito não é atribuição exclusiva da autoridade policial, é ponto assente, muito comuns sendo os inquéritos administrativos.O Código de processo penal, no art. 4º., parágrafo único, ressalva, do modo mais claro, a pertinência desses inquéritos extrapoliciais, acentuando que a competência dada no inquérito à polícia judiciária, exercida por autoridades policiais, não exclui a de autoridades administrativas, para promoverem inquéritos, quando a isso legalmente autorizadas.”[61]

O Superior Tribunal de Justiça assim já se manifestou:“Como procedimento meramente informativo que é, o inquérito policial pode ser dispensado se o titular da ação penal dispuser de elementos suficientes para o oferecimento da denúncia.” (DJU, 08/06/92, p. 8.594).

O Supremo Tribunal Federal também já decidiu:“A inexistência de inquérito policial não impede a denúncia, se a Promotoria dispõe de elementos suficientes para a formulação da demanda penal – Existência, no caso, de indícios suficientes para afastar a alegação de falta de justa causa para a denúncia. Habeas Corpus indeferido.” (STF, Habeas Corpus n.º 70.991-5, Rel. Min. Moreira Alves).

Especificamente sobre o poder investigatório do Ministério Público veja-se:“O MP tem legitimidade para proceder a investigações ou prestar tal assessoramento à Fazenda Pública para colher elementos de prova que possam servir de base a denúncia ou ação penal. A CF/88, no art. 144, § 4º., não estabeleceu com relação às Polícias Civis a exclusividade que confere no § 1º., IV, à Polícia Federal para exercer as funções de Polícia Judiciária.” (RT, 651/313).

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça decidiu no mesmo sentido:“HABEAS CORPUS N.º 59.300-SP – Rel.: Min. Arnaldo Esteves Lima – EMENTA – Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Processual penal. Crimes de denunciação caluniosa, estelionato e quadrilha. Legitimidade do ministério público para proceder a investigação criminal. Súmula 234 do STJ. Legitimidade do ministério público para conduzir investigação. Alegação de inépcia da denúncia. Ausência de manifestação pelo tribunal de origem. Não conhecimento do writ nessa parte. Constrangimento ilegal configurado pela omissão da autoridade. Devolução da matéria para a apreciação pela origem. Ordem conhecida em parte e, nessa parte, concedida parcialmente. 1. O Ministério Público tem legitimidade para conduzir investigação e proceder à colheita de elementos de convicção quanto à materialidade do delito e indícios de sua autoria, sob pena de inviabilizar o cumprimento de sua função de promover, privativamente, a ação penal pública (RHC 16.267/DF, Rel. Min. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ de 4/9/2006, p. 325; REsp 761.938/SP, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 8/5/2006, p. 282; e HC 41.615/MG, de minha relatoria, DJ de 2/5/2006, p. 343, RJP vol. 10, p. 106). 2. Além disso, conforme entendimento já sumulado por esta Corte, “A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia” (Súmula n.º 234 do STJ).” (…) (STJ/DJU de 26/2/07, pág. 619).

Ministério Público. Procedimento investigatório. Policiais. A Turma denegou a ordem de habeas corpus com o entendimento de que, em se tratando de procedimento com o fito de apurar fatos reputados delituosos e cuja autoria é atribuída a integrante da organização policial, cuja atividade é controlada externamente pelo Ministério Público, em tese não existirá antinomia para que o Parquet promova a investigação. Ressalte-se que, mesmo no caso de eventual irregularidade por invasão das atribuições da Polícia Judiciária pelo Ministério Público, ainda assim em nada estaria afetada a ação penal porque objeto de apuração de delito cometido por agente de autoridade policial. Precedentes citados do STF: RHC 66.428-PR, DJ 2/9/1988, e RE 205.473-9-AL, DJ 19/3/1999. (RHC 10.947-SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 19/02/2002).

Não obstante o disposto no artigo 144, § 4º, da CF, o Parquet não é absolutamente proibido de praticar atos investigatórios. Não faria sentido, sendo essa instituição responsável, exclusivamente, pela ação penal pública – artigo 129, I da CF -que não pudesse praticar qualquer ato tendente à elucidação dos fatos. Se para o oferecimento da  denúncia se exige um embasamento concreto quanto à materialidade e autoria do delito, isso significa que a atividade do órgão acusador depende diariamente de uma reconstituição bem feita do quadro fático. Sendo assim, não se pode negar sua competência para a prática de fatos investigatórios, embora não lhe seja permitido instaurar, formalmente, inquérito policial, pois esta é atividade atribuída à polícia judiciária. Não por acaso, a Súmula, 234/STJ dispõe que ‘a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia’”. (STJ – Ac. un. da 5ª. T, publicado em 18/3/2002 – RO – HC 10.974 – SP – Rel. Min. Félix Fischer).

A Turma negou provimento ao recurso, considerando o Ministério Público como detentor da competência para efetuar diligências, colher depoimentos, investigar os fatos a fim de poder oferecer denúncia. Entendeu que não há qualquer ilegalidade de o MP, em processo investigatório, requerer a expedição de mandado de busca e apreensão, não ficando à espera de informações fornecidas, única e exclusivamente, pela polícia judiciária. Além de que havia a possibilidade de desaparecimento de provas documentais pertinentes.” (RMS 12.357-RJ, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 19/11/2002).

STJ – HABEAS CORPUS Nº 18.060 – PR (2001/0097707-4) (DJU 26.08.02, SEÇÃO 1, P. 271, J. 07.02.02). RELATOR: MINISTRO JORGE SCARTEZZINI – EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL – CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO – CRIME DE “LAVAGEM” – INÉPCIA DA DENÚNCIA – CERCEAMENTO DE DEFESA – IMPEDIMENTO DE PROCURADORES PARA O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA – PROVAS ILÍCITAS –INOCORRÊNCIA. (…) Quanto à ilegalidade das investigações promovidas pelo Ministério Público, sem a instauração de inquérito policial, o writ, igualmente, improcede. Com efeito, a questão acerca da possibilidade do Ministério Público desenvolver atividade investigatória objetivando colher elementos de prova que subsidiem a instauração de futura ação penal, é tema incontroverso perante esta eg. Turma. Como se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 129, I, atribui, privativamente, ao Ministério Público promover a ação penal pública. Essa atividade depende, para o seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor. Entender-se que a investigação desses fatos é atribuição exclusiva da polícia judiciária, seria incorrer-se em impropriedade, já que o titular da Ação é o Órgão Ministerial. Cabe, portanto, a este, o exame da necessidade ou não de novas colheitas de provas, uma vez que, tratando-se o inquérito de peça meramente informativa, pode o MP entendê-la dispensável na medida em que detenha informações suficientes para a propositura da ação penal. Ora, se o inquérito é dispensável, e assim o diz expressamente o art. 39, § 5º, do CPP, e se o Ministério Público pode denunciar com base apenas nos elementos que tem, nada há que imponha a exclusividade às polícias para investigar os fatos criminosos sujeitos à ação penal pública. A Lei Complementar nº 75/90, em seu art. 8º, inciso IV, diz competir ao Ministério Público, para o exercício das suas atribuições institucionais, “realizar inspeções e diligências investigatórias”. Compete-lhe, ainda, notificar testemunhas (inciso I), requisitar informações, exames, perícias e documentos às autoridades da Administração Pública direta e indireta (inciso II) e requisitar informações e documentos a entidades privadas (inciso IV).

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo AgRg no HC 39607/SC; AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 2004/0162302-3 Relator(a) Ministro NILSON NAVES (361) Órgão Julgador T6 – SEXTA TURMA Data do Julgamento 08/11/2005 Data da Publicação/Fonte DJ 06.02.2006 p. 343 Ementa Ministério Público (funções). Participação na investigação e formulação de denúncia (possibilidade). Impedimento (inexistência). 1. É lícito entender que o Ministério Público, embora as investigações sejam destinadas à polícia nas áreas federal e estadual (apuração de infrações penais), pode, também e concomitantemente, delas se incumbir. 2. A participação do promotor na fase investigatória não o impede de propor a ação penal (Súmula 234). 3. Agravo regimental improvido.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Processo HC 41615/MG; HABEAS CORPUS 2005/0018682-5 Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA Data do Julgamento 06/04/2006 Data da Publicação/Fonte DJ 02.05.2006 p. 343 Ementa PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROCEDER A INVESTIGAÇÃO. GRAVAÇÃO DE CONVERSA POR UM DOS INTERLOCUTORES. PROVA LÍCITA. LAUDO DE DEGRAVAÇÃO VICIADO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. O Ministério Público tem legitimidade para conduzir investigação e proceder à colheita de elementos de convicção quanto à materialidade do delito e indícios de sua autoria, sob pena de inviabilizar o cumprimento de sua função de promover, privativamente, a ação penal pública.

 Em sessão realizada no dia 27 de outubro de 2004, no julgamento do Recurso Especial nº. 494320, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o Ministério Público pode realizar investigações criminais. O entendimento foi firmado pela Sexta Turma, que, por maioria, acatou recurso contra a decisão que determinou à 9ª. Promotoria de Investigações Penais do Rio de Janeiro a suspensão das apurações de irregularidades no Procon do Estado. Naquela oportunidade, o Ministro Nilson Naves argumentou “que as polícias não têm direito exclusivo à investigação criminal. Para exemplificar esse entendimento, ele citou o parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição, dispositivo que confere poderes investigatórios às Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs)”. Para ele, “se por um lado não há texto normativo que mencione expressamente a possibilidade de o MP conduzir investigações criminais, por outro não há dispositivo legal em sentido oposto. Ao contrário da total omissão, há indícios aqui, ali e acolá em direção à legitimidade da atuação. (…) Se o MP é responsável pela propositura da ação penal pública, deve ter o direito e os meios de colher elementos que vão sustentar essa ação.

HABEAS CORPUS N.º 49.419-PE – Rel.: Min. Felix Fischer/5.ª Turma – EMENTA – Penal e processual penal. Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Artigos 288, 297 e 299, todos do CP e art. 90 da Lei n.º 8.666/93. Trancamento da ação penal. Falta de justa causa. Dilação probatória. Impossibilidade na via eleita. Poder investigatório do ministério público. Prisão preventiva. Sentença condenatória. Fundamentação. (…) Na linha de precedentes desta Corte, malgrado seja defeso ao Ministério Público presidir o inquérito policial propriamente dito, não lhe é vedado, como titular da ação penal, proceder investigações. A ordem jurídica, aliás, confere explicitamente poderes de investigação ao Ministério Público – art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8.º, incisos II e IV, e § 2.º, da Lei Complementar n.º 75/1993. (Precedentes). (…) Writ denegado.” (STJ/DJU de 26/2/07, pág. 617).

O Tribunal Regional Federal da 2ª. Região, em acórdão unânime proferido pela sua 6ª. Turma, assim decidiu:“(…) No que tange à possibilidade bem como à legalidade da prova recolhida pelo Ministério Público, em seu poder investigatório criminal, fulcrado no art. 129, VI, VII, VIII da CF, que tem como reflexo os arts. 26, V da Lei nº. 8.625/93 e 8º., IV, V, VII e VIII da LC 75/93, independentemente da norma do art. 144, § 1º., IV do Texto Básico, a teor do princípio da unidade, trata-se de questão, outrossim, pacificada nas Cortes Superiores (STF, HC 77.371, DJ 23/10/98; STF, HC 81.303, DJ 23/08/02; STF, HC 18.060, DJ 26/08/02), que conferem ao termo – exclusividade – o sentido de divisão funcional entre as diversas categorias policiais, e não a vedação de que o MP possa proceder em tema investigatório.” (HC nº. 2001.02.01.022657-6 – Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund, j. 02/04/03, DJU 2 29/04/03, p. 211).

É de Julio Fabbrini Mirabete a lição: “Como titular do jus puniendi, nada impede que o Ministério Público, além de requisitar informações e documentos para instruir procedimentos promova atos de investigação para apuração de ilícitos penais, pois, nos termos da Constituição Federal, ´pode exercer outras funções que lhe sejam conferidas desde que compatíveis com sua finalidade´ (artigo 129, IX).[62]

Para encerrarmos as argumentações, objetamos ainda o seguinte: mesmo em se admitindo que a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual não permitisse as investigações criminais (o que, absolutamente, não é verdade), ainda assim, por força do art. 80 da referida Lei Federal poderíamos utilizar, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal nº. 75/93), que “não deixa margem de dúvidas quanto à operacionalização das investigações criminais diretas no âmbito do Ministério Público”, como argumenta Polastri, no livro já aludido (p. 91), referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos arts. 7º., I e 8º., VII, in verbis: “Art. 7º. – Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais:

 

                                                           I – instaurar inquérito civil e outros procedimentos correlatos.”

“(omissis).”

Art. 8º. – Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

                                                           “(omissis).”

VII – expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar.”

Há vários sistemas jurídicos alienígenas que ao priorizarem em suas reformas processuais penais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet.

No Direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a Polícia detém o poder de conduzir as investigações preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal).

Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal, como veremos a seguir:

Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal:

StPO § 160: (1) (omissis)

(2). A Promotoria de Justiça deverá averiguar não só as circunstâncias que sirvam de incriminamento, como também as que sirvam de inocentamento, e cuidar de colher as provas cuja perda seja temível.

                                                           (3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial.

                                                           StPO § 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.”

Na Itália não é diferente no seu “Codice di Procedura Penale”:

Art. 326 – O Ministério Público e a Polícia Judiciária realizarão, no âmbito de suas respectivas atribuições, a investigação necessária para o termo inerente ao exercício da ação penal.

Art. 327 – O Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da Polícia Judiciária.

Em Portugal, conforme lição de Germano Marques da Silva, “os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas funções processuais, nomeadamente na investigação criminal que é levada a cabo no inquérito, e fazem-no sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional (arts. 56 e 263).”[63]

Ainda em solo lusitano, a Lei Orgânica do Ministério Público, no seu art. 3º., diz competir ao Ministério Público “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e “ fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.

Em França não é diferente, à vista do art. 41 do respectivo Código de Processo Penal:“O Procurador da República procede ou faz proceder a todos os atos necessários à investigação e ao processamento das infrações da lei penal. Para esse fim, ele dirige as atividades dos oficiais e agentes da polícia Judiciária dentro das atribuições do seu tribunal.

Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público, quando isto lhe é faticamente possível, investigar diretamente fatos criminosos, principalmente quando se tratar de abuso de autoridade (a título de exemplo); é bom que se diga não ter o Ministério Público, muitas das vezes, condições de, motu proprio, levar adiante uma investigação criminal, até por carência de material, seja humano (investigadores, por exemplo), seja físico (viaturas, espaço físico apropriado, etc); quando houver dificuldades, nada impede, ao contrário, tudo indica, que seja requisitada a instauração de inquérito policial (ou termo circunstanciado na forma da Lei nº. 9.099/95) à autoridade policial respectiva, atentando-se para o fiel cumprimento da requisição e adotando-se as medidas criminais em caso de não atendimento (pode-se estar configurado, por exemplo, o delito de prevaricação), além da possibilidade de se configurar ato de improbidade administrativa (art. 11, II da Lei nº. 8.429/92).

Neste aspecto, importante é a observação de Enzo Bello, no sentido que “diante da escassez de recursos humanos e materiais do Ministério Público – afinal a sua quantidade de membros e de estrutura física é ínfima em relação ao tamanho da sua demanda de trabalho -, cumpre a cada membro da instituição conferir um cunho seletivo às suas atividades profissionais (…), de maneira a atribuir uma índole prioritária aos casos em que se tratem de condutas delitivas cuja potencialidade lesiva seja capaz de ocasionar uma verdadeira disfunção social e atingir ou obstar os princípios, fundamentos e metas da República brasileira (isto é, os verdadeiros anseios e perspectivas da nossa sociedade).[64]

O Conselho Superior do Ministério Público Federal (em 14 de setembro do ano de 2004) editou a Resolução nº. 77/04 que regulamenta os procedimentos de investigação criminal a serem observados pelos procuradores da República em todo o país. A norma interna define o procedimento investigatório criminal como um instrumento de coleta de dados para apurar a ocorrência de infrações penais, que servirá para a proposição de ações penais ou instauração de inquérito pela polícia. Define-se que o membro do Ministério Público Federal poderá dar início ao procedimento valendo-se de qualquer meio, ainda que informal, mas terá que fundamentá-lo. “Caso surja a necessidade de investigação de fatos diversos dos que já estavam incluídos no procedimento, o procurador responsável terá que fazer um aditamento ou abrir um novo procedimento. Para assegurar a impessoalidade na condução das investigação, o procedimento será protocolado, autuado e distribuído. As partes envolvidas e terceiros diretamente interessados poderão ter acesso às apurações, excetuando os casos de sigilo. Nessa hipótese, o investigado terá acesso apenas aos documentos referentes aos atos de que ele tenha participado pessoalmente. Os procuradores também terão que respeitar um prazo para encerrar as investigações, 30 dias, contados da data de instauração, que só poderá ser prorrogado por meio de decisão fundamentada.

Veja-se esta decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello, em 16 de outubro de 2006:

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 89.837-8 DISTRITO FEDERAL – RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO – DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 491 – Apenso 4): “‘HABEAS CORPUS’. CRIME DE TORTURA IMPUTADO A DELEGADO DA POLÍCIA CIVIL. INVESTIGAÇÃO REALIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. COLHEITA DE DEPOIMENTOS. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. INQUÉRITO POLICIAL. PRESCINDIBILIDADE. 1. A teor do disposto no art. 129, VI e VIII, da Constituição Federal, e no art. 8º, II e IV, da Lei Complementar nº 75/93, o Ministério Público, como titular da ação penal pública, pode proceder a investigações, inclusive colher depoimentos, sendo-lhe vedado, tão-somente, presidir o inquérito policial, que é prescindível para a propositura da ação penal. 2. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. 3. Ordem denegada.” O exame dos fundamentos em que se apóia o julgamento ora impugnado parece descaracterizar, ao menos em sede de estrita delibação, a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pelos ilustres impetrantes. A decisão emanada do E. Superior Tribunal de Justiça – que reconhece, ao Ministério Público, a prerrogativa de promover, por direito próprio, sob sua autoridade e direção, investigações penais – parece legitimar-se em face da Constituição da República promulgada em 1988. É certo que o ordenamento positivo outorga, à autoridade policial, a atribuição para presidir o inquérito policial, consoante assinala JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 86, item n. 4.3, 7ª ed., 2000, Atlas). HC 89.837-MC / DF  Essa especial regra de competência, contudo, não impede que o Ministério Público, que é o “dominus litis” – e desde que indique os fundamentos jurídicos legitimadores de suas manifestações (CF, art. 129, VIII) –, determine a abertura de inquéritos policiais, ou, então, requisite diligências investigatórias, em ordem a prover a investigação penal, quando conduzida pela Polícia Judiciária, com todos os elementos necessários ao esclarecimento da verdade real e essenciais à formação, por parte do representante do “Parquet”, de sua “opinio delicti”. Todos sabemos que o inquérito policial, enquanto instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado, ordinariamente, a subsidiar a atuação persecutória do próprio Ministério Público, que é – nas hipóteses de ilícitos penais perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária (RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Trata-se, desse modo, o inquérito policial, de valiosa peça informativa, cujos elementos instrutórios – precipuamente destinados ao órgão da acusação pública – visam a possibilitar a instauração da “persecutio criminis in judicio” pelo Ministério Público (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa”, p. 43/45, item n. 12, 1986, Forense; VICENTE DE PAULO VICENTE DE AZEVEDO, “Direito Judiciário Penal”, p. 115, 1952, Saraiva; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I, p. 153, 1961, Forense). É certo, no entanto, que, não obstante a presidência do inquérito policial incumba à autoridade policial (e não ao Ministério Público), nada impede que o órgão da acusação penal possa solicitar, à Polícia Judiciária, novos esclarecimentos, novos depoimentos ou novas diligências, sem prejuízo de poder acompanhar, ele próprio, os atos de investigação realizados pelos organismos policiais. Essa possibilidade – que ainda subsiste sob a égide do vigente ordenamento constitucional – foi bem reconhecida por este Supremo Tribunal Federal, quando esta Corte, no julgamento do RHC 66.176/SC, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, ao reputar legítimo o oferecimento de denúncia baseada em investigações acompanhadas pelo Promotor de Justiça, salientou, no que se refere às relações entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, que este pode “requisitar a abertura de inquérito e a realização de diligências policiais, além de solicitar esclarecimentos ou novos elementos de convicção a quaisquer autoridades ou funcionários (…)”, competindo-lhe, ainda, HC 89.837-MC / DF “acompanhar atos investigatórios junto aos órgãos policiais”, embora não possa “intervir nos atos do inquérito e, muito menos, dirigi-lo, quando tem a presidi-lo a autoridade policial competente” (RTJ 130/1053). Cabe salientar, finalmente, sem prejuízo do exame oportuno da questão pertinente à legitimidade constitucional do poder investigatório do Ministério Público, que o “Parquet” não depende, para efeito de instauração da persecução penal em juízo, da preexistência de inquérito policial, eis que lhe assiste a faculdade de apoiar a formulação da “opinio delicti” em elementos de informação constantes de outras peças existentes “aliunde”. Esse entendimento – que se apóia no magistério da doutrina (DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 07, 17ª ed., 2000, Saraiva; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. I/111, 4ª ed., 1999, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 111, item n. 12.1, 7ª ed., 2000, Atlas; EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. I/288, 2000, Bookseller,  v.g.) – tem, igualmente, o beneplácito da jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 664/336 – RT 716/502 – RT 738/557 – RSTJ 65/157 – RSTJ 106/426, v.g.), inclusive a desta Suprema Corte (RTJ 64/342 – RTJ 76/741 – RTJ 101/571 – RT 756/481): “- O inquérito policial não constitui pressuposto legitimador da válida instauração, pelo Ministério Público, da ‘persecutio criminis in judicio’. Precedentes. O Ministério Público, por isso mesmo, para oferecer denúncia, não depende de prévias investigações penais promovidas pela Polícia Judiciária, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de informação, fundados em base empírica idônea, sob pena de o desempenho da gravíssima prerrogativa de acusar transformar-se em exercício irresponsável de poder, convertendo, o processo penal, em inaceitável instrumento de arbítrio estatal. Precedentes.” (RTJ 192/222-223, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Sendo assim, e sem prejuízo da ulterior apreciação da controvérsia em referência, notadamente em face do julgamento plenário, ainda em curso, do Inq 1.968/DF (em cujo âmbito está sendo rejeitada, por três votos a dois, a tese ora exposta na presente impetração), indefiro o pedido de medida liminar. HC 89.837-MC / DF. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República. Publique-se. Brasília, 16 de outubro de 2006. Ministro CELSO DE MELLO.

Em outra oportunidade, o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, deferiu integralmente as diligências requeridas pelo Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, no Inquérito (INQ 2593) aberto para investigar condutas atribuídas ao presidente do Senado. Entre elas, a  quebra dos sigilos fiscal e bancário do senador. Lewandowski esclareceu que o Procurador-Geral solicitou informações sobre a movimentação bancária e a declaração de bens e rendas do senador, a partir de 2000, além de pedir toda a documentação que está no Conselho de Ética do Senado sobre o caso. “Os dados nele coletados afetam a privacidade e a intimidade do investigado. Isso [o segredo de justiça] ocorreria com qualquer cidadão”, explicou. Ele ressaltou que todo o procedimento é, no momento, uma investigação feita a pedido do Procurador-Geral. “Não se está fixando culpa, não se está emitindo nenhum juízo de valor, nem por parte do MP, muito menos por parte do Judiciário.” O Ministro Ricardo Lewandowski esclareceu que o Procurador-Geral da República é o dono da ação penal. “Quem investiga é o Ministério Público. O Judiciário não investiga nada. Ele apenas defere ou indefere as providências solicitadas [pelo MP].” Questionado sobre a possibilidade de arquivamento de uma solicitação de abertura de inquérito do MP, ele afirmou que isso só ocorre se o pedido for absolutamente inepto e sem base. “O Ministério Público Federal, naturalmente, quando faz uma solicitação dessas, sobretudo o procurador-geral da República, fundamenta o pedido. Então, à luz da convicção do procurador-geral, existem elementos que permitem um aprofundamento da investigação.” O Ministro Lewandowski, por sua vez, afirmou que deferiu o pedido do procurador-geral porque entendeu que ele encontra fundamento nos fatos relatados. De acordo com o ministro, a documentação solicitada será anexada aos autos do inquérito, que voltará para o procurador-geral, para avaliar se houve ou não a prática eventual de um delito por parte do presidente do Senado. “Se ele se convencer disso, poderá solicitar a abertura de uma ação penal, mediante o oferecimento de uma denúncia, que poderá ou não ser recebida pelo STF, por parte do Plenário.” Fonte: STF (Grifo nosso).

Apenas ressaltamos o nosso pensamento quanto à impossibilidade de que o mesmo Promotor de Justiça ou Procurador da República (ou os mesmos profissionais ou a mesma equipe) que investigue possa, depois, valorando os atos investigatórios por ele próprio colhidos, oferecer denúncia.

Não cremos ser isso possível. Como afirma Aury Lopes Jr. “crer na imparcialidade de quem está totalmente absorvido pelo labor investigador é o que James Goldschmidt denomina de erro psicológico.”[65] Para este autor, os “processos psicológicos interiores levam a um pré-juízo sobre condutas e pessoas”, minando “a posição de neutralidade[66] interior que se exige para que comece e atue no processo.” Observa, ainda, agora citando Oliva Santos, que “essas idéias pré-concebidas até podem ser corretas – fruto de uma especial perspicácia e melhores qualidades intelectuais – mas inclusive nesse caso não seria conveniente iniciar o processo penal com tal comprometimento subjetivo.”[67]

Vejamos a respeito as observações de Antonio Evaristo de Morais Filho, citando Altavilla:        “Este fenômeno foi muito bem estudado por Altavilla, em sua famosa ‘Psicologia Judiciária’ (Porto, 1960, v. 5, p. 36-39), onde dedicou dois verbetes aos perigos das hipóteses provisórias, que podem ‘seduzir o investigador, de maneira a torná-lo daltônico nas apreciações das conclusões de indagações ulteriores’. Adverte o mestre italiano que, uma vez internalizada na mente do policial, do promotor ou do juiz, a procedência da hipótese provisória, cria-se em seu espírito a necessidade de demonstrar o que considera verdade, ‘à qual ele liga uma especial razão de orgulho’, como se a eventual demonstração da improcedência de sua hipótese ‘constituísse uma razão de demérito’. E assim, intoxicado por sua verdade, sobrevaloriza todos os elementos probatórios que lhe forem favoráveis e diminui ‘o valor dos contrários, até o ponto de não serem tomados em consideração num ato.”[68]

Afinal de contas nas veias do Promotor de Justiça também corre o sangue dos pobres mortais… Observamos que o Supremo Tribunal Federal, em 12 de fevereiro do ano de 2004, ao julgar a ADI nº. 570, declarou parcialmente inconstitucional o art. 3º. da Lei do Crime Organizado (Lei n°. 9.034/90), que previa a possibilidade de o Juiz conduzir direta e pessoalmente investigação criminal. Nesta decisão, ressaltou-se que “ninguém pode negar que o Magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade”. Será que esta assertiva também não se aplicaria ao Promotor de Justiça? Será que o Promotor de Justiça, ao analisar uma peça investigatória, não deverá fazê-lo de maneira também imparcial? Concordamos com Marcos Zilli, ao afirmar que o fenômeno investigatório “concentra as energias para a construção de uma acusação de modo que o sujeito que a conduz dificilmente deixará de ficar a ela vinculado.”[69]

Note-se que o Código de Processo Penal reputa impedido o Promotor de Justiça que “tiver funcionado” como autoridade policial, ex vi do art. 252, II, c/c art. 258 do Código de Processo Penal; óbvio que não é exatamente o caso, mas, mutatis mutandis, observamos que o legislador procurou afastar do subsequente processo criminal aquele que investigou os respectivos fatos na fase pré-processual. No julgamento de uma exceção de impedimento, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul deixou consignado que o objetivo do art. 252, II, CPP (que se aplica aos membros do Ministério Público – art. 258, CPP) “é impedir quem funcionou na busca de elementos incriminadores de servir, posteriormente, como juiz no mesmo processo (…), estando “impedido de processar e julgar o réu o juiz que haja diligenciado a obtenção de elementos incriminadores do ato por ele praticado, antes de instaurada a ação penal”. (RT 526/434-435).

Neste mesmo sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:“(…) É inegável que quem participou de processo administrativo, colhendo provas e decidindo, está moral, legal e psicologicamente comprometido para uma decisão judicial descompromissada.” No voto, afirma-se que “o que se quer é evitar idéias preconcebidas.” (HC 4591-MG – 6ª. T – j. 12/06/95 – Rel. Ministro Adhemar Maciel – DJU 25/09/95).

Bem a calhar a lição de M. Costa Manso: “A autoridade incumbida de descobrir o criminoso, especialmente nos casos graves e obscuros, é muitas vezes dominada pelo desejo de triunfar, de revelar argúcia e capacidade, perdendo, em conseqüência, a calma e a imparcialidade.” (O Processo na Segunda Instância e suas Aplicações à Primeira, São Paulo: Livraria Acadêmica, 1923, Vol. I, p. 615).[70]

A jurisprudência, nesse sentido, também é encontrada, inclusive no Superior Tribunal de Justiça:“O magistrado e o membro do Ministério Público se houverem participado da investigação probatória não podem atuar no processo. Reclama-se a isenção de ânimo de ambos. Restaram comprometidos (sentido jurídico). Daí a possibilidade de argüição de impedimento, ou suspeição.” (Recurso em habeas corpus 4.769. Relator: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. DJU de 06 mai. 1996).

Ministério Público. Impedimento de seus órgãos. Nulidade da denúncia. 1) O membro do Ministério Público que atua na fase inquisitorial, apurando pessoalmente os fatos, torna-se impedido para oficiar como promotor da ação penal (inteligência dos arts. 252, I e 258, CPP). Nula, portanto, é a denúncia ofertada, se inobservado esse aspecto.” (EJTJAP, v. 1, n. 1, p. 91).

Os artigos 129, inciso VIII e 144, § 4º, da Constituição Federal não prevêem a atuação do Ministério Público nos procedimentos investigatórios criminais, tendo em vista tal fato comprometer a sua isenção. Desta forma, não há que se admitir que um mesmo órgão acumule funções de investigador, acusador e até julgador, já que é este órgão quem decide pelo impulso inicial da ação penal ou pelo seu arquivamento. Ordem concedida” (TJMG – 3ª C. – HC 1.0000.08.470250-5/000(1) – rel. Antônio Armando dos Anjos – j. 29.04.2008 – DOE 10.06.2008).

De toda forma, o Superior Tribunal de Justiça já sumulou em sentido contrário ao decidir que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.” (Súmula 234). Aliás, os termos desta súmula deixam claro que o Superior Tribunal de Justiça admite a investigação criminal pelo parquet, mesmo porque, como afirma Eduardo Franco Cândia, “se o constituinte originário entendeu por bem que cabe ao Ministério Público a exclusiva titularidade da ação penal pública (art. 129, I) e, portanto, quis o fim, por certo que os meios lhe devem ser inerentes.” (grifos no original).[71]

Interessante, a título de ilustração, a observação feita por Renê Ariel Dotti:“(…) forçoso é reconhecer que o sistema adotado em nosso país deixa muito a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. E o maior obstáculo para alcançar estes objetivos decorre da falta de maior integração não somente das categorias funcionais da Polícia Judiciária e do Ministério Público como também de seus integrantes. Observa-se, lamentavelmente e em muitas circunstâncias, a existência de um processo de rejeição que parece ser genético.”[72] Este mesmo autor, em um alentado estudo sobre o assunto, após defender fundamentadamente a possibilidade da investigação criminal pelo Ministério Público, extrai as seguintes conclusões:

Neste derradeiro artigo é possível resumir algumas conclusões fundamentais visando decifrar a esfinge da investigação criminal: 1.ª) O desafio não se resolverá pela interpretação de textos (CF, CPP, leis federal e estadual do MP, etc.); 2.ª) A Polícia Judiciária não detém (desde o advento do CPP) o monopólio da apuração dos ilícitos penais; 3.ª) O procedimento preparatório da ação penal deverá designar-se inquérito criminal em oposição ao inquérito civil, assim nominado pela Constituição (art. 129, III) e pela Lei n.º 7.347/85 (ação civil pública, art. 8.º, § 1.º); 4.ª) O inquérito criminal deve constituir um procedimento único, vale dizer, não se pode admitir a investigação paralela (inquérito, pela Polícia Judiciária, e Procedimento Administrativo, pelo Ministério Público); 5.ª) Uma reordenação constitucional e legal é indispensável para estabelecer o concurso de funções e superar o conflito de atribuições entre o MP e a Polícia Judiciária; 6.ª) Quando for necessária a abertura de inquérito criminal pela Polícia Judiciária, a colheita de prova deve ser sumária e, em breve prazo ser remetido ao MP; 7.ª) Recebendo os autos, o MP poderá propor o arquivamento, oferecer denúncia ou prosseguir, ele mesmo, com a investigação; 8.ª) Não haverá mais a baixa ou devolução de autos, rotina que alimenta a usina de prescrição; 9.ª) O chamado Procedimento Administrativo Investigatório do Ministério Público (ou designação correlata) ofende o princípio do devido processo legal porque: a) não existe prazo de encerramento; b) não há controle jurisdicional; c) o indiciado ou suspeito não tem a faculdade de requerer diligência, em atenção ao princípio da verdade material; 10.ª) O aludido procedimento administrativo tem sido utilizado como alternativa contra a burocracia, abuso de poder ou corrupção do inquérito policial; 11.ª) Uma nova concepção de Política Processual Penal deverá modificar textos constitucionais e legais para atribuir ao MP o controle da investigação, sem prejuízo do trabalho auxiliar da Polícia Judiciária; 12.ª) A investigação criminal é exercício do poder estatal; deve coordená-la o órgão que promove a ação penal de natureza pública.”[73]

Atentos àquela observação do Mestre Dotti (verdadeira e preocupante), esclarecemos que tais considerações, longe de representarem obstáculos à atuação policial, são apenas elucidações que devem ser feitas a respeito das prerrogativas do Ministério Público, nunca se olvidando da importância da polícia judiciária.

Devemos, na lição do maior de todos os Promotores de Justiça, “no trato com as autoridades policiais (…), além do respeito devido às prerrogativas daqueles colaboradores e não subordinados, pugnar pelo prestígio que advém da sua correção.”[74]

Julita Lemgruber, Leonarda Musumeci e Ignacio Cano, em excelente estudo sobre o controle externo da polícia no Brasil, atentaram para “o fato de o Ministério Público ter poder de investigar por conta própria crimes cometidos por policiais e de iniciar o processo judicial à revelia dos procedimentos conduzidos pelas Corregedorias é percebido como ´invasão` dos promotores na área de competência das polícias. (…) Portanto, além de uma inércia interna, a limitada atuação do Ministério Público nessa área deriva também do acirramento das resistências corporativas, sustentadas pelo próprio hibridismo do modelo processual brasileiro.[75]

Esta matéria estava para ser definitivamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal, no Inquérito nº. 1.968-2/DF; o relator, Ministro Marco Aurélio, pronunciou-se contrário à possibilidade da investigação pelo Ministério Público, sendo seguido pelo então Ministro Nelson Jobim. Votaram contrariamente, ou seja, pela possibilidade da investigação do Ministério Público, os Ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau e Carlos Ayres de Brito. Porém, como o indiciado no referido inquérito deixou de ser Deputado Federal (perdendo, por conseguinte, o foro por prerrogativa de função), os autos foram encaminhados à primeira instância no dia 13 de março de 2007.

Atualmente, esta questão encontra-se para decisão no Plenário do Supremo Tribunal Federal. Na sessão do dia 11 de junho de 2007, por um pedido de vista do Ministro Cezar Peluso, foi suspenso o julgamento. A matéria está sendo debatida por meio do julgamento de um pedido de Habeas Corpus (HC 84548) do empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, que é acusado de ser o mandante do assassinato do ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, ocorrido em janeiro de 2002. Até o momento, já proferiram seus votos o relator do habeas corpus, Ministro Marco Aurélio e o Ministro Sepúlveda Pertence. O primeiro se posicionou contra o poder de investigação do Ministério Público, alegando que essa atribuição é exclusiva da Polícia. O Ministro Pertence rejeita a tese de inconstitucionalidade das investigações realizadas pelo MP. Para o Ministro Marco Aurélio, o “inquérito policial” acabou se tornando um “inquérito ministerial”. “A sobreposição notada, procedendo o Ministério Público, a um só tempo, a investigação e a propositura da ação penal, não se coaduna com a ordem jurídica em vigor [no Brasil]”, disse ele. Para o Ministro, “o caso revelado neste processo é emblemático”. Ele explicou que já havia processo devidamente formalizado na Primeira Vara da Comarca de Itapecerica da Serra, em São Paulo. “Paralelamente, o Ministério Público veio a formalizar procedimento investigatório, colhendo elementos, submetendo os atos a sigilo e designando promotor de Justiça para a presidência das investigações.” O Ministro Sepúlveda Pertence disse que o MP pode complementar as informações relativas às investigações. “Eu rejeito a argüição abstrata de inconstitucionalidade de qualquer ato investigatório do Ministério Público.” (Fonte: STF).

A Segunda Turma do STF, em julgamento realizado no dia 10 de março de 2009, reconheceu por unanimidade que existe a previsão constitucional de que o Ministério Público tem poder investigatório. A Turma analisava o Habeas Corpus (HC) 91661, referente a uma ação penal instaurada a pedido do MP, na qual os réus são policiais acusados de imputar a outra pessoa uma contravenção ou crime mesmo sabendo que a acusação era falsa. Segundo a relatora do HC, ministra Ellen Gracie, é perfeitamente possível que o órgão do MP promova a coleta de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e materialidade de determinado delito. “Essa conclusão não significa retirar da polícia judiciária as atribuições previstas constitucionalmente”, poderou Ellen Gracie. Ela destacou que a questão de fundo do HC dizia respeito à possibilidade de o MP promover procedimento administrativo de cunho investigatório e depois ser a parte que propõe a ação penal. “Não há óbice a que o Ministério Público requisite esclarecimentos ou diligencie diretamente à obtenção da prova de modo a formar seu convencimento a respeito de determinado fato, aperfeiçoando a persecução penal”, explicou a Ministra. A relatora reconheceu a possibilidade de haver legitimidade na promoção de atos de investigação por parte do MP. “No presente caso, os delitos descritos na denúncia teriam sido praticados por policiais, o que também justifica a colheita dos depoimentos das vítimas pelo MP”, acrescentou. Na mesma linha, Ellen Gracie afastou a alegação dos advogados que impetraram o HC de que o membro do MP que tenha tomado conhecimento de fatos em tese delituosos, ainda que por meio de oitiva de testemunhas, não poderia ser o mesmo a oferecer a denúncia em relação a esses fatos. “Não há óbice legal”, concluiu. Fonte: STF. Após este julgamento, o Ministro Carlos Ayres Britto arquivou um pedido de Habeas Corpus (HC 99280), onde se afirmava não caber ao Ministério Público a instauração de Procedimento Investigatório Criminal, papel que seria da Polícia Judiciária (nos estados, a Polícia Civil; no nível federal, a Polícia Federal). “Não caberia ao MP a investigação criminal por reunir em uma mesma pessoa a produção de provas e a acusação, pois causaria desequilíbrio na relação processual, em prejuízo da defesa. Violaria, portanto, os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal”, dizia o texto. Todavia, ao analisar o pedido, o ministro Ayres Britto disse não vislumbrar “qualquer plausibilidade jurídica dos fundamentos expostos no pedido, a indicar ilegalidade ou ato abusivo por parte do Ministério Público Federal onde se iniciou o procedimento investigatório”. Meses depois, decidiu-se que o Ministério Público tem, sim, competência para realizar, por sua iniciativa e sob sua presidência, investigação criminal para formar sua convicção sobre determinado crime, desde que respeitadas as garantias constitucionais asseguradas a qualquer investigado. A Polícia não tem o monopólio da investigação criminal, e o inquérito policial pode ser dispensado pelo MP no oferecimento de sua denúncia à Justiça. Entretanto, o inquérito policial sempre será comandado por um delegado de polícia. O MP poderá, na investigação policial, requerer investigações, oitiva de testemunhas e outras providências em busca da apuração da verdade e da identificação do autor de determinado crime. Com esse entendimento, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu, por votação unânime, o Habeas Corpus (HC) 89837, em que um agente da Polícia Civil do Distrito Federal, condenado pelo crime de tortura de um preso para obter confissão, pleiteava a anulação do processo desde seu início, alegando que ele fora baseado exclusivamente em investigação criminal conduzida pelo MP. O relator do processo, Ministro Celso de Mello, optou por apresentar seu voto, independentemente do fato de que ainda está pendente de julgamento, pelo Plenário da Suprema Corte, o HC 84548, no qual se discute justamente o poder investigatório do MP. Ele citou vários precedentes da própria Corte para sustentar seu ponto de vista em favor do poder de investigação criminal do MP.  Um deles foi o caso emblemático do recurso em HC (RHC) 48728, envolvendo o falecido delegado do extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo Sérgio Paranhos Fleury, tido como personagem-símbolo do então existente “Esquadrão da Morte”, suspeito de eliminar adversários do regime militar e de torturar presos políticos, em ação realizada pelo próprio MP. No julgamento daquele processo, realizado em 1971 sob relatoria do ministro Luiz Gallotti (falecido), a Corte rejeitou o argumento da incompetência do MP para realizar investigação criminal contra o delegado. A investigação contra Fleury fora comandada pelo então procurador Hélio Bicudo, integrante do MP paulista. Outro precedente citado pelo ministro Celso de Mello foi o julgamento, pelo Plenário do STF, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1517, relatada pelo ministro Maurício Corrêa (aposentado), em que a Suprema Corte também reconheceu que não assiste à Polícia o monopólio das investigações criminais. O relator se reportou, ainda, ao julgamento do HC 91661, de Pernambuco, relatado pela ministra Ellen Gracie, também envolvendo um policial, em que a Segunda Turma rejeitou o argumento sobre a incompetência do MP para realizar investigação criminal. O ministro Celso de Mello ressaltou, em seu voto, que este poder investigatório do MP é ainda mais necessário num caso como o de tortura, praticada pela polícia para forçar uma confissão, desrespeitando o mais elementar direito humano, até mesmo porque a polícia não costuma colaborar com a investigação daqueles que pertencem aos seus próprios quadros. “O inquérito policial não se revela imprescindível ao oferecimento da denúncia, podendo o MP  deduzir a pretensão punitiva do estado”, afirmou o ministro Celso de Mello, citando precedentes em que o STF também considerou dispensável, para oferecimento da denúncia, o inquérito policial, desde que haja indícios concretos de autoria. “Na posse de todos os elementos, o MP pode oferecer a denúncia”, completou. “O MP tem a plena faculdade de obter elementos de convicção de outras fontes, inclusive procedimento investigativo de sua iniciativa e por ele presidido”. Também segundo ele, a intervenção do MP no curso de um inquérito policial pode caracterizar o poder legítimo de controle externo da Polícia Judiciária, previsto na Lei Complementar nº 75/1993. Contrariando a alegação da defesa de que a vedação de o MP  conduzir investigação criminal estaria contida no artigo 144, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição Federal, segundo o qual caberia à Polícia Federal exercer, “com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União” – o que excluiria o MP –, todos os ministros presentes à sessão da Turma endossaram o argumento do relator. Segundo ele, a mencionada “exclusividade” visa, apenas, distinguir a competência da PF das funções das demais polícias – civis dos estados, polícias militares, polícias rodoviária e ferroviária federais. Foi esse também o entendimento manifestado pelo subprocurador-geral da República, Wagner Gonçalves, presente ao julgamento. Celso de Mello argumentou que o poder investigatório do MP está claramente definido no artigo 129 da CF que, ao definir as funções institucionais do MP, estabelece, em seu inciso I, a de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.  No mesmo sentido, segundo ele, vão os incisos V, V, VII, VIII e IX do mesmo artigo. O ministro ressaltou que o poder investigatório do MP é subsidiário ao da Polícia, mas não exclui a possibilidade de ele colaborar no próprio inquérito policial, solicitando diligências e medidas que possam ajudá-lo a formar sua convicção sobre determinado crime, como também empreender investigação por sua própria iniciativa e sob seu comando, com este mesmo objetivo. Os mesmos fundamentos que resultaram no indeferimento do HC 89837, do DF, foram utilizados pela Segunda Turma do STF, para indeferir o HC 85419, impetrado em favor de dois condenados por roubo, extorsão e usura no Rio de Janeiro. Segundo a denúncia, apresentada com base em investigação conduzida pelo Ministério Público, um dos condenados é um ex-policial civil que estaria a serviço de grupos criminosos. Segundo o relator do processo, ministro Celso de Mello, as vítimas do condenado procuraram promotor de Justiça para denunciar a extorsão por não confiar na isenção da Polícia Judiciária para investigar o caso. Fonte: STF.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), FUFBa e Faculdade Baiana. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] No nosso livro Direito Processual Penal, Salvador: Jus Podivm, comentamos os demais projetos de lei e as leis já promulgadas.

[3] Período que abrange parte do governo de Getúlio Vargas (1937 – 1945) que encomendou ao jurista Francisco Campos uma nova Constituição, extra-parlamentar, revogando a então Constituição legitimamente outorgada ao País por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934).

[4] Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).

[5] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[6] Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 104.

[7] Ob. cit. p. 108.

[8] Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, o saudoso Frederico Marques adverte que “não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais, pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. (…) Ainda aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua tremenda mediocridade como diploma legislativo” (ob. cit., Vol. II, p. 366/367).

[9] Vitu, André, Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13/14.

[10] Grinover, Ada Pallegrini, “A reforma do Processo Penal”, in www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001.

[11] Maier, Julio B. J.. e Struensee, Eberhard, Las Reformas Procesales Penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.

[12] Norberto Bobbio assinala, muito a propósito,  que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” , in A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 1.

[13] Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

[14] Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira, in Revista de Processo, nº. 61, p. 111.

[15] Grinover, Ada Pallegrini, “A reforma do Processo Penal”, in www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001.

[16] Walter, Tonio, Professor da Universidade de Friburgo, in Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 133.

[17] Segundo Daniele Negri, da Universidade de Ferrara, “quizá nunca como en estos últimos cinco años había sufrido el procedimiento penal italiano transformaciones tan amplias, numerosas y frecuentes. (…) La finalidad de dotar de eficiencia a la Justicia se ha presentado como la auténtica meta de las innovaciones normativas que se han llevado a cabo en los últimos años (1997-2001).”, in Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 157.

[18] Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 164.

[19] Apud Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., 1998, p. 9.

[20] Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Lei dos Juizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 107 (em co-autoria com Geraldo Prado).

[21] Direito Processual Penal, 1ª. ed., 1974, reimpressão pela Coimbra Editora, 2004, p. 543.

[22] Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2007, p. 147.

[23]  Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 5ª. ed., 2005, p. 110.

[24] Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, São Paulo: RT, 1992, p. 42, tradução de Luiz Flávio Gomes

[25] Juan H. Sproviero, La víctima del delito y sus derechos, Buenos Aires: Depalma, p. 24

[26] Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nº. 21, p. 422.

[27] O Papel da Vítima no Processo Criminal, Malheiros Editores, 1995. Indicamos também o trabalho intitulado “El papel de la víctima en el proceso penal según el Proyecto de Código Procesal Penal de la Nación”, por Santiago Martínez (Fonte: www.eldial.com – 12/08/2005).

[28] La Vittima nel Sistema Italiano della Giustizia Penale – Un Approccio Criminologico, Padova, 1990, p. 144.

[29]  Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra, p. 219-220.

[30]  CARVALHO, Taipa de, op. cit., p. 220 e 240.

[31] Idem.

[32] Tratado de Derecho Penal. Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1987. v I, p. 463- 464.

[33] Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.

[34] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal. São Paulo: José Bushatsky, 1975, p. 124.

[35] O Processo Penal em Face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.

[36] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).

[37]Art.. – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Art. 4º – Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.”

[38] Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).

[39] Na verdade, um dever jurídico tendo em vista o princípio da obrigatoriedade que rege a ação penal pública.

[40] Lei dos Juizados Especiais Criminais, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 91.

[41] Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 88.

[42] Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 239.

[43] J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, p. 1.210.

[44] Adiante mostraremos disposições semelhantes na Lei Complementar n.º 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União).

[45] Comentários à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Obra Jurídica Editora, ps. 204/205.

[46] Idem, p. 90.

[47] Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 257.

[48] Ministério Público e sua Investigação Criminal, Porto Alegre: Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2001, p. 135.

[49] Ob. cit., p. 239.

[50] Idem, p. 400.

[51] A Polícia Federal tem, com exclusividade, apenas a prerrogativa de exercer as funções de polícia judiciária da União, função que não se confunde com a de apurar crimes (a distinção é feita pela própria Constituição Federal (art. 144, § 1º., I e IV). As funções de polícia judiciária compreendem, por exemplo, aquelas previstas no art. 13, I, II e III do Código de Processo Penal. No processo de Extradição nº. 974, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, destacou o papel da Polícia Federal como “polícia judiciária da República”; nesta condição, destacou o Ministro que a instituição precisaria “se aparelhar para cumprir suas atribuições constitucionais.” Entre elas, a de dar totais condições para o bem-estar daqueles que se encontram presos em suas unidades prisionais. “A Polícia Federal há de se aparelhar visando ao cumprimento das atribuições constitucionais – entre estas, as que encerram a qualificação de polícia judiciária”, anotou o Ministro.

[52] Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 165.

[53] Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997 (tradução portuguesa de José Lamego).

[54] Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 239.

[55] Crime e Constituição – A Legitimidade da Função Investigatória do Ministério Público, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 81.

[56] Código de Processo Penal Comentado, Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 16.

[57] Ob. cit., p. 84.

[58]O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito.” Confira-se, a propósito, os arts. 200 e 203, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e arts. 397 e 400, do Regimento Interno do Senado Federal.

[59] Ob. cit. págs. 85 e 87.

[60] Processo Penal, São Paulo: Atlas, 1997, p. 77.

[61] Código de Processo Penal Anotado, Borsoi, 1960, p. 248.

[62] Código de Processo Penal Interpretado, São Paulo: Atlas, 8ª ed., 2001, p. 560.

[63] Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa: Editorial Verbo, 1996.

[64] Perspectivas para o Direito Penal e para um Ministério Público Republicano, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 335.

[65] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, nº. 127 – Junho de 2003, p. 11.

[66] Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Neste sentido, veja-se a lição de Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como elemento de seu Papel SocialinO Trabalho“, encarte de doutrina da Revista “Trabalho em Revista”, fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista “Trabalho & Doutrina”, nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.

[67] Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 154/155.

[68] Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n.º 19, p. 106.

[69] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, nº. 188 – Julho de 2008, p. 02.

[70] Apud Roberto Delmanto Junior, “As Modalidades de Prisão Provisória e Seu Prazo de Duração”, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2ª. edição, 2001, p. 123 (nota de rodapé).

[71] “O Ministério Público e o Poder de Investigar Diretamente Infrações Penais”, in Repertório de Jurisprudência IOB nº. 15/2004, Vol. III, p. 444.

[72] O Ministério Público e a Polícia Judiciária – Relações formais e desencontros materiais, in Ministério Público, Direito e Sociedade, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 135.

[73] Site www.parana-online.com.br – Caderno Direito e Justiça, 28 de março de 2004.

[74] Roberto Lyra, Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 121.

[75] “Quem Vigia os Vigias?”, Rio de Janeiro: Record, 2003, págs., 124/125.


Teoria Geral do Processo aplicada ao Processo Penal. Não, obrigado. Por Rômulo de Andrade Moreira

 

BREVE ESBOÇO A RESPEITO DA INEXISTÊNCIA DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO[1]

 

Este pequeno artigo trata-se de uma espécie de resumo da minha obra “Crítica à Teoria Geral do Processo”, publicada pela Editora LexMagister, 2014, Porto Alegre/RS. (http://www.multieditoras.com.br/produto.asp?id=1081&site=1).[2]

 

Obviamente que, como todo resumo, não podemos nos aprofundar sobre o tema (como o fizemos no livro acima referido), mas adianto que ele tem como finalidade oferecer uma pequena contribuição para a desconstrução definitiva a respeito da ideia de que existiria uma Teoria Geral do Processo e, como tal, poder-se-ia conceber o Direito Processual como uma só categoria dentro da ciência do Direito Processual. Pretendo, portanto, fazer uma crítica respeitosa, porém contundente, à chamada Teoria Geral do Processo ou, como alguns preferem, à Teoria Unitária do Processo. A razão pela qual me debrucei sobre o tema é que entendo ter o Direito Processual Civil conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

 

Com efeito, esta Teoria Geral é inadmissível exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Por óbvio que conceitos genéricos, tais como os de jurisdição (nada obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários, competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc, servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por exemplo. A natureza jurídica do processo, também. Da mesma forma, a garantia ao duplo grau de jurisdição, e assim por diante… Igualmente em relação à natureza jurídica do processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow), como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), etc., etc.

Porém, evidentemente, que esta afirmação última jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque, ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no Processo Penal: a questão do ônus e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.

 

Sou daqueles que entendem que o Direito Processual Civil tem o seu próprio conteúdo que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, razão pela qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

A Teoria Unitária é inadmissível exatamente porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos: “A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (…) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (…) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (…), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (…) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (…) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (…) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado  em sua concepção e estrutura.[3] (tradução minha).

Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: “Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (…) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (…) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[4]

A propósito, prefaciando o meu primeiro livro, escreveu generosa e exageradamente, Calmon de Passos, adepto ferrenho de uma Teoria Geral do Processo: “Em nenhum momento de minha vida de professor ministrei aulas de Processo Penal, nem jamais publiquei algum artigo versando algum de seus problemas relevantes. (…) Para não ser infiel à verdade, direi que se me faltam credenciais como mestre de Processo Penal, não sou de todo desprovido das virtudes de um bom aluno dessa disciplina. E que bom aluno tenho sido quando presente, e sempre estou, às aulas que Rômulo ministra no Curso de Especialização em Processo que coordeno na UNIFACS! Faço coro com meus colegas, unânimes em louvar a clareza de sua exposição, o rigor lógico a que submete seu pensamento, sua correção terminológica e seu empenho em fugir do “discurso” jurídico inconsequente, que muitas vezes se pretende também eloquente. Esse rigor intelectual de Rômulo no tocante ao que ensina é igual ao rigor ético que se impõe em seu comportamento profissional. É esse mestre e esse homem que se revelam presentes nos trabalhos que compõem este volume de estudos de Processo Penal editado pela Forense. Em todos os artigos estão presentes as marcas da excelência de Rômulo: clareza, correção técnica e erudição sem excesso. E concluo asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que foram ontem seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestres.” (Salvador, 07 de março de 2002). Grifei.

 

[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça na Bahia e Coordenador do Centro de Especialização e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG), IELF (SP) e do Centro de Aperfeiçoamento e Atualização Funcional do Ministério Público da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Sabbá Guimarães), ambas publicadas pela Editora Juruá, 2010 (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares – Comentários à Lei nº. 12.403/11”, “Juizados Especiais Criminais”, “Comentários à Lei do Crime Organizado” e “Crítica à Teoria Geral do Processo”, todos estes publicados pela Editora LexMagister, Porto Alegre/RS, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, publicado pela Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

[2] A ideia foi do meu amigo Alexandre Morais da Rosa, grande processualista penal e verdadeiro Magistrado. Fica aqui o meu agradecimento pela “dica”. Valeu!

[3] Eugenio Florian, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, págs. 20 a 23.

[4] Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, págs. 38 e 40.

 

Confira aqui

 


CONJUR – EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas, por João Ozorio de Melo

 

FIDELIDADE ÀS PROVAS

EUA criam sistema de controle no MP para evitar condenações erradas

08 de julho de 2014, 16:44h

Por João Ozorio de Melo

A mentalidade dos promotores americanos está mudando, progressivamente. O esforço sistemático para condenar a qualquer custo todos os réus que caiam na malha da Promotoria e obter a pena mais alta possível para eles vem sendo substituído, aos poucos, por um esforço coordenado para buscar a verdade e promover a justiça, apenas. A coordenação desse esforço é feita por um órgão de controle interno e externo, criado em diversas unidades do Ministério Público do país. Em algumas jurisdições são chamados de Programa de Integridade da Condenação. Em outras, de Unidade de Integridade da Condenação.

Há razões nobres e, de certa forma, vergonhosas, para isso. As vergonhosas dispararam o alarme. Por exemplo, um estudo recente do Centro para Integridade Pública, chamado “Erro Nocivo: Investigando Promotores Locais nos EUA”, examinou processos criminais em 2.341 jurisdições e encontrou inúmeros casos de má conduta de promotores, que quebraram ou manipularam as regras para obter condenações.

O estudo relatou mais de 2 mil casos em que juízes de 1º Grau ou de tribunais de recursos extinguiram a ação, anularam condenações ou reduziram sentenças, citando como causa a má conduta de promotores.

A Promotoria do Distrito de Manhattan, em Nova York, que lidera o movimento pelo porte de seu Programa de Integridade da Condenação, declara em seu website que o objetivo é “buscar justiça em todos os casos que chegam à Promotoria e rever erros passados”. E explica a razão: “Através dos anos e em todo o país, homens e mulheres inocentes têm sido condenados por crimes que não cometeram. Isso não apenas rouba a liberdade da pessoa inocente, como deixa nas ruas um criminoso, livre para cometer mais crimes”.

website da Unidade de Integridade da Condenação do Condado de Cuyahoga, em Ohio, declara na abertura do texto: “Todos os promotores querem condenar os culpados, não os inocentes. Porém, embora os processos de julgamento e de recursos contenham salvaguardas para todos os acusados de crime, reconhecemos que o sistema de Justiça criminal é uma instituição humana e, como tal, não pode ser perfeito”. Por isso, a Promotoria local criou seu próprio sistema de controle interno e externo.

O programa de Manhattan é liderado pelo promotor Cyrus Vince, um ex-advogado criminalista — um caso raro de advogado criminalista que se converte para a Promotoria, porque o inverso é bastante comum. Alguns promotores que não gostam do programa, dizem que Vince é um advogado criminalista que se travestiu de promotor para criar despesas desnecessárias para o Ministério Público.

Porém, a ex-promotora, ex-juíza e professora da Escola de Direito da Universidade de Washington, em Seattle, Maureen Howard, saiu em sua defesa. Ela declarou ao Huffington Post que “se foi necessário um advogado criminalista se tornar promotor para resgatar os ideais do Ministério Público, ele é muito bem-vindo — e já chegou tarde”.

Para a ex-promotora, Vince e a Promotoria de Manhattan entendem que a função dos membros do Ministério Público é a de promotor de Justiça, não promotor de condenações. Em outras palavras, ela disse, eles estão recuperando o que as diretrizes éticas da classe professam: um membro do Ministério Público é um “ministro da Justiça” — uma espécie de sacerdócio.

Segundo Maureen Howard, os papéis do promotor e do advogado de defesa não são simétricos. A obrigação do advogado de defesa é o de defender seu cliente contra possíveis abusos do Estado, durante o curso do processo. A do promotor é bem diferente.

As proteções constitucionais garantidas aos réus, tais como privilégio contra a autoincriminação, a presunção de inocência, o rigoroso padrão da culpabilidade além da dúvida razoável, a exigência de veredicto unânime do júri (no sistema dos EUA, obviamente), existem para contrabalançar o poder muito maior do Estado sobre o indivíduo, ela diz.

O promotor também tem o dever de buscar provas que podem, potencialmente, prejudicar o seu caso, bem como o de exibir provas exculpatórias para a defesa, voluntariamente e sem pedido, enquanto isso não é um dever da defesa, diz a ex-promotora.

A revelação de prova exculpatória pela acusação à defesa é uma decorrência do sistema americano de “discovery”, um processo em que as duas partes “trocam figurinhas” — isto é, revelam os fatos, as provas, os testemunhos e qualquer outro elemento que possa esclarecer o caso, antes do julgamento. O resultado, muitas vezes, é que não há julgamento, porque a acusação e a defesa fazem um acordo.

A descoberta, a qualquer momento, de que a Promotoria escondeu provas exculpatórias que mudariam o rumo do julgamento enfurece os juízes, muitas vezes, que reprimem duramente o promotor e o faz cair em desgraça até entre os colegas.

Condenações indevidas
Na última semana, a juíza Lynda Van Davis, de Nova Orleans, anulou a condenação à pena de morte de Michael Anderson, de 23 anos, pelo assassinato de cinco pessoas, depois da descoberta de que o promotor escondeu duas peças essenciais de prova.

Essa anulação de julgamento eleva as preocupações da comunidade jurídica do país com o sistema judicial de Nova Orleans, diz Maureen Howard. Ela conta que um estudo recente do advogado Bidish Sarma, da Universidade Southern de Louisiana, revelou que mais condenados à morte na cidade foram libertados do que de executados, devido a comprovações posteriores de condenações erradas.

Mas os promotores não os únicos responsáveis por “condenações erradas”. O Projeto Inocência, que libertou recentemente 317 presos inocentes, alguns deles no corredor da morte, atribui as condenações erradas a, principalmente, seis causas: identificação errada do réu por testemunhas, provas forenses ruins ou mal elaboradas, confissões falsas conseguidas pela Polícia, má conduta de promotores, má-fé de informantes ou denunciantes e serviços ineptos de alguns advogados.

Estudos realizados indicam que as formas mais comuns de má conduta de policiais são os seguintes: sugerir os fatos do crime a um inocente durante longos interrogatórios para que façam uma confissão coerente, coagir confissões falsas, mentir ou iludir os jurados sobre suas observações, deixar de apresentar aos promotores provas exculpatórias, oferecer incentivos para garantir provas não confiáveis de informantes.

As formas mais comuns de má conduta de promotores, segundo esses estudos, são: esconder provas exculpatórias da defesa, manipular, manejar ou destruir provas deliberadamente, permitir a participação de testemunhas sabidamente não confiáveis no julgamento, pressionar testemunhas da defesa a não testemunhar, usar provas forenses fraudulentas, apresentar argumentos enganosos que elevam o valor probatório de testemunhas.

Isso tudo é uma coisa que deve ficar no passado, como declaram as jurisdições da Promotoria americana que criaram as unidades em defesa da integridade da condenação, que estão surgindo uma após a outra em todo o país. Essas unidades têm duas frentes de trabalho principais: uma, impedir que esses problemas voltem a ocorrer daqui para a frente, criando mecanismos de controle para assegurar a correção; outra, aceitar requerimentos de inocentes presos, de seus familiares e advogados, para que voltem a investigar o caso e possam corrigir erros em condenações passadas.

Se a unidade comprovar uma condenação errada, a própria Promotoria tomará a iniciativa de pedir ao juiz a anulação da sentença condenatória.

Os prerrequisitos para uma unidade reexaminar o caso variam um pouco de uma jurisdição para outra, mas incluem, em geral: 1) a condenação deve ter ocorrido dentro da jurisdição; 2) o condenado deve estar vivo; 3) o pedido deve se referir a um caso verdadeiro de inocência – pedidos frívolos e casos de erro processual apenas são descartados; 4) devem existir provas novas e verossímeis da inocência e a promotoria deve ser informada sobre como pode acessar essas provas; 5) o condenado deve renunciar a suas salvaguardas e privilégios processuais, concordar em cooperar com a unidade e em fornecer informações completas à unidade em todas as inquirições – essa última leva alguns advogados a torcer o nariz.

O modelo criado pela Promotoria de Manhattan, seguido pela maioria dos demais programas de outras jurisdições, tem um Comitê da Integridade da Condenação, o chefe do Comitê e um Painel Consultor de Política de Integridade da Condenação.

O comitê é um órgão interno, formado por dez membros graduados da Promotoria, com a atribuição de rever as práticas e políticas relativas ao treinamento dos promotores (novos e veteranos), avaliação de casos, investigação e obrigações de divulgação [de provas e fatos], com foco em possíveis erros, tais como identificações falsas por testemunhas e confissões falsas. O chefe coordena o trabalho do comitê e lidera todas as investigações de casos que apresentam uma reclamação significativa de condenação errada.

O painel consultor é um órgão externo, formado por especialistas respeitados em justiça criminal, incluindo juristas e ex-promotores, com a atribuição de assessorar o comitê e orientá-lo sobre melhores práticas e questões em desenvolvimento na área de condenações erradas.

Para encontrar sites desses programas na Internet, basta pesquisar nos mecanismos de busca as palavras “Conviction Integrity Program” ou “Conviction Integrity Unit”.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 08 de julho de 2014, 16:44h


CONJUR A Lei Anticorrupção como lei penal encoberta, por Pierpaolo Cruz Bottini

DIREITO DE DEFESA

A Lei Anticorrupção como lei penal encoberta

08 de julho de 2014, 08:00h

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Mais uma vez tratamos da Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção). Das muitas questões levantadas sobre ela, destacamos uma que tem merecido especial atenção: qual a real natureza desta norma? Trata-se de uma lei meramente administrativa ou há elementos de direito penal material em seus dispositivos? A indagação — longe de ser meramente acadêmica — tem aspectos práticos relevantes, como mostram as seguintes considerações.

A lei apresenta-se como norma administrativa. Talvez o legislador não tenha definido os comportamentos ali descritos como crimes, nem as sanções como penas, para afastar problemas de constitucionalidade. Isso porque a norma destina-se a pessoas jurídicas e, nesta seara, há quem refute a adequação constitucional da criminalização destes entes1, ou que limite tal hipótese aos âmbitos expressamente previstos na Carta Maior: atos contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular (Constituição Federal, artigo173, parágrafo 5º) ou contra o meio ambiente(Constituição Federal, artigo 225, parágrafo 3º).

Para além disso, a lei trabalha com a responsabilidade objetiva, forma de imputação inconcebível na seara penal, ao menos em um ordenamento jurídico no qual a pena se assenta na culpabilidade.

Por isso, e talvez para evitar tais questionamentos, o legislador classificou as normas previstas na lei em comento como administrativas, afastando-a do terreno penal e das polêmicas que sempre o rondam.

No entanto, uma análise mais apurada do texto legal revela que, seja qual for o escopo do legislador, os comportamentos descritos e as consequências a eles atreladas, embora formalmente intitulados como “administrativos”, têm substância penal, ou quase penal2. Não se quer — nos estreitos limites deste texto — discutir os limites quantitativos ou qualitativos que marcam a fronteira entre o direito penal e o administrativo3. Porém, uma rápida e superficial análise revela o quanto do primeiro há nos atos ilícitos e nas sanções previstas na Lei 12.846/13.

Quanto aos atos ilícitos, quase todos têm correspondente na seara criminal, com uma ou outra distinção peculiar. O artigo 5º da lei, por exemplo, elenca a prática ou o financiamento da corrupção ativa, o uso de interposta pessoa para ocultar interesses ou beneficiários dos atos ilícitos e a fraude à licitação, cujos correspondentes penais são conhecidos.

Quanto às consequências/sanções, sua extensão e gravidade são equiparadas às penais. Uma breve passagem de olhos pelas sanções penaisaplicáveis às pessoas jurídicas previstas na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) demonstra que estas são mais brandas do que as instituídas pela lei pretensamente administrativa de combate à corrupção. Na primeira, a consequência mais grave é a interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, ou a proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (artigo 22). Na segunda, a infração aos seus preceitos pode ensejar, além das mesmas sanções, operdimento de bens e da dissolução compulsória da pessoa jurídica.

Isso significa que, independente do nome dado pelo legislador, a gravidade ou extensão das sanções previstas na Lei 12.846/13 corresponde ou ultrapassa aquelas previstas em normas expressamente incriminadoras. Há um caráter de lei penal encoberta na norma em discussão.

Não cabe aqui discutir quais as implicações disso para a sua constitucionalidade. O que importa é destacar que, quanto mais nítido o caráter sancionador da lei — que no caso concreto se equipara à sanção penal —, mais legítimo exigir que algumas garantias do direito penal e do processo penal sejam reconhecidas quando de sua aplicação4.

Nessa linha, inúmeras questões concretas podem ser levantadas, a começar pelos parâmetros para a interpretação da Lei Anticorrupção. Sua naturezapenal, ou quase-penal, impede a analogia ou o recurso a fontes que extrapolem o teor literal dos dispositivos. Assim, por exemplo, quando a lei fixa como ilícito o “uso de interposta pessoa jurídica para dissimular reais interesses ou a identidade dos beneficiados dos atos praticados” (artigo 5º, III), a sanção somente poderá recair sobre aquele que usa a pessoa jurídica interposta e não sobre a própria pessoa jurídica interposta. Talvez essa não tenha sido a ideia do legislador, talvez pretendesse responsabilizar também a pessoa jurídica usada, mas uma interpretação que não violente o conteúdo semântico dos termos empregados na lei, — única possível para textos penais e similares — impede tal extensão.

Do lado processual, o direito de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) deve ser reconhecido na aplicação da lei. Diante de uma investigação para apuração da eventual prática dos ilícitos nela previstos, a empresa pode optar por não colaborar com as investigações, não podendo, por isso, ser penalizada. Daí a inaplicabilidade, em tal circunstância, do ilícito descrito no artigo 5º, inciso V (“dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”). Deixar de entregar documentos ou de responder a ofícios é direito da empresa, de forma que o inciso V mencionado somente será aplicável se a instituição praticar fraude processual ou ato similar, ou se a empresa que dificulta não for a investigada ou suspeita, mas outra que possui dados ou informações relevantes.

Essas questões, que evidentemente dependem de reflexão mais apurada e até mesmo de situações concretas para melhor análise, servem de alerta os responsáveis pela aplicação da lei, dos advogados às autoridades públicas, pois esse caráter penal, ou muito próximo do penal, que ostenta a norma em comento, traz consigo a necessidade da observância e do respeito aos limites inerentes às normas de caráter repressivo. Do contrário, bastará transformar crimes e penas em ilícitos administrativos para deixar de lado todas as garantias que a custo tornaram-se indispensáveis em um direito penal ambientado em um Estado Democrático de Direito.


1Sem contar os inúmeros autores que entendem inconstitucional qualquer responsabilização criminal da pessoa jurídica. Nessa linha, REALE JR., A responsabilidade penal da pessoa jurídica, in PRADO, Luis Regis (org.) Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: RT, 2001, p.139. Na mesma obra, LUISI, Luis. Notas sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, p.99.
2Nessa linha, SCAFF, Fernando Facury e SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Lei anticorrupção é substancialmente de caráter penal. Conjur, 05/02/2014
3Sobre o tema, ver GRECO FILHO, Vicente e RASSI, Joao. A corrupção e o direito administrativo sancionador. In PASCHOAL, Janaina Conceição e SILVEIRA, Renato de Mello Jorge, Livro Homenagem a Miguel Reale Jr., p.741 e ss.
4Nessa linha, OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 3ª ed., São Paulo: RT, 2009, p.383 e ss. Embora negue a identidade entre direito penal e direito administrativo sancionador, COSTA reconhece a exigência de normas mais rigorosas para o direito administrativo sancionador, pois este não deixa de ser uma imissão estatal na esfera de direitos fundamentais. COSTA, Helena Regina Lobo da, Direito Penal Economico e direito administrativo sancionador. Tese de livre-docência USP.
 é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 08 de julho de 2014, 08:00h


Um exemplo do Jogo Processual –

A compreensão do processo como jogo faz com que se possa entender o peso das jogadas. A tática utilizada deve antecipar as consequência das consequências. No caso a seguir, quem sabe, com menos avidez acusatória a possibilidade do jogo tivesse se mantido. Um mal jogador gera o resultado nefasto. Confira a matéria abaixo, do CONJUR, por João Ozoorio de Melo, e o voto da Corte Americana aqui.

Tribunais dos EUA discutem aplicação do princípio da dupla punição

CONJUR 01 de junho de 2014, 09:15h

Por João Ozorio de Melo

Ninguém contesta, em juízo, o princípio de que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pela mesma infração penal. Porém, sua aplicação não é pacífica nos EUA. Vez ou outra, tribunais americanos, de diversos graus, se engajam em disputas sobre as bases nas quais se instalaria o princípio dadouble jeopardy (dupla punição — ou duplo julgamento).

A primeira questão, por exemplo, é se o julgamento se consumou ou não. Essa é uma questão recorrente nos tribunais. Eles têm dificuldades em entrar em acordo, em cada caso, porque há mais de um precedente na história, sempre com nuances diferentes, e cada um escolhe o que mais lhe aprouver. Se o julgamento se consumou ou não, se aplica ou não o princípio e o réu pode ou não sofrer dupla punição.

A par dessa discussão, há mais a considerar. Por exemplo, se a Promotoria precisa interromper os procedimentos, porque as circunstâncias não são boas, em que ponto do julgamento é possível fazê-lo, para que o juiz não declare “caso encerrado”. Outro ponto de discórdia: que estratégia a Promotoria deveria usar para impedir que um julgamento prossiga — se não há mais possibilidade de adiamento — para evitar a configuração do julgamento duplo.

Na última terça-feira (27/5), a Suprema Corte dos EUA anulou decisões de dois tribunais: o tribunal de recursos e o Tribunal Superior de Illinois, exatamente por causa dessas questões controversas. No caso que tramitou pelas cortes, a discussão começa pela primeira questão: se um julgamento, do qual a Promotoria desistiu por um problema circunstancial, se consumou ou não. E, em consequência, se pode ou não voltar a acusar o réu.

Nos EUA, como no Canadá e no México — diferentemente do Brasil, que adota o “ne bis in idem” — o princípio que proíbe o “duplo julgamento de um mesmo fato” é uma garantia constitucional do cidadão.

No caso em questão, as circunstâncias ficaram extremamente ruins para os promotores quando o juiz, depois de quatro anos, marcou a data do julgamento: as duas principais testemunhas, as que garantiriam o sucesso da Promotoria, desapareceram. Até então, estava tudo certo. Mas, com o desaparecimento das testemunhas na “hora H”, os promotores pediram — e conseguiram — inúmeros adiamentos do julgamento. Mas tudo tem um limite, de paciência e de custos para o tribunal.

O juiz chegou a sugerir aos promotores que pedissem a extinção do caso. A polícia não conseguia achar as testemunhas, dois ex-condenados, que, nesse caso específico, eram as vítimas do réu — Esteban Martinez, que foi acusado de agressão qualificada e uso temerário de violência contra Avery Binion and Demarco Scott.

No dia em que o juiz decidiu colocar um ponto final no caso, ele ainda deu mais 20 minutos à Promotoria para esperar pelas testemunhas, um prazo que aumentou, em seguida, para duas horas. Enfim, o juiz anunciou que iria iniciar o julgamento. Os promotores pediram para se aproximar e declararam sua estratégia: A Promotoria não iria participar do caso. E o juiz disse: “Muito bem. Vamos ver no que isso vai dar”.

Deu errado, porque a estratégia da Promotoria não funcionou. O juiz instalou o corpo de jurados no Tribunal do Júri e os fez prestar o juramento de praxe. Em seguida, solicitou aos promotores que apresentassem suas alegações iniciais. Os promotores declararam: “A Promotoria não vai participar do caso”. O juiz disse então aos promotores para chamar a primeira testemunha. Os promotores repetiram: “A Promotoria não vai participar do caso”. Aparentemente, essa seria a estratégia dos promotores: inviabilizar o julgamento e torcer para o juiz lhes conceder mais um adiamento, que, por sinal, já haviam peticionado.

Mas não deu certo. O advogado de defesa, chamado a se pronunciar, não perdeu a oportunidade de colocar um fim ao caso. Fez um pedido de decisão do juiz, não do júri (directed finds), de inocência (não culpado, nos EUA) do réu, com o consequente encerramento do caso, porque a Promotoria não tinha qualquer prova a apresentar contra seu cliente.

O juiz consultou os promotores, que repetiram: “A Promotoria não vai participar do caso”. O magistrado, então, concordou com o advogado de defesa. Declarou que, por falta de provas, o réu não era culpado e encerrou o julgamento. Os promotores recorreram ao tribunal de recursos. Pediram o reconhecimento da não consumação do julgamento. E, portanto, do direito da Promotoria de voltar a processar Martinez em um tribunal de primeiro grau.

O tribunal de recursos e o tribunal superior de Illinois decidiram que a Promotoria podia ir em frente e levar Martinez a julgamento, porque, nesse caso, a teoria do duplo julgamento não se aplicava. Isso porque, nos procedimentos anteriores, “Martinez nunca correu o risco de ser condenado”. Afinal, os promotores se abstiveram de participar do caso. Para esses tribunais, a estratégia da Promotoria foi correta.

O tribunal superior decidiu, com base em precedente, que a aplicação do princípio do duplo julgamento não pode se basear em uma “regra mecânica rígida”. A questão mais importante no caso, segundo o tribunal, é que Martinez realmente não foi julgado, porque os promotores declararam que não iriam participar do caso, antes do juramento do júri.

A Suprema Corte dos EUA discordou. Em uma decisão “per curiam” (tomada pelo tribunal como um todo, não por votos dos ministros), estabeleceu, com base em precedente, que o princípio do duplo julgamento passa a valer quando o juiz instala o júri e os jurados prestam o juramento. “E como o tribunal foi informado de que o Estado não tinha provas para sustentar a condenação, não resta dúvida de que Martinez não pode ir a um segundo julgamento, porque isso seria violar a Constituição”, diz a decisão.

Ao contrário dos tribunais anteriores, a Suprema Corte declarou, na decisão, que a estratégia da Promotoria foi incorreta. Os promotores deveriam ter aproveitado a oportunidade, criada pelo juiz, de extinguir o caso. “Se o Estado tivesse aceito o convite do juiz, a cláusula da ‘double jeopardy’ não o impediria de voltar a acusar Martinez. Em vez disso, o Estado participou na seleção dos jurados e não pediu a extinção do processo antes do juramento do júri”, diz a decisão.

Para a Suprema Corte, quando a Promotoria rejeitou a oportunidade de extinguir o caso, assumiu os riscos de entrar em um julgamento sem provas suficientes para condenar o réu. “O Estado sabia ou deveria saber que a absolvição do réu, que acabou acontecendo, barra para sempre a possibilidade de voltar a julgá-lo, porque o julgamento chegaria a um ponto em que o princípio do julgamento duplo passaria a valer”.

 

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Regime Inicial Fechado não é a regra

DIREITO PENAL. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA NO CRIME DE TORTURA.

 

Não é obrigatório que o condenado por crime de tortura inicie o cumprimento da pena no regime prisional fechado. Dispõe o art. 1º, § 7º, da Lei 9.455/1997 – lei que define os crimes de tortura e dá outras providências – que “O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado”. Entretanto, cumpre ressaltar que o Plenário do STF, ao julgar o HC 111.840-ES (DJe 17.12.2013), afastou a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados, devendo-se observar, para a fixação do regime inicial de cumprimento de pena, o disposto no art. 33 c/c o art. 59, ambos do CP. Assim, por ser equiparado a crime hediondo, nos termos do art. 2º, caput e § 1º, da Lei 8.072/1990, é evidente que essa interpretação também deve ser aplicada ao crime de tortura, sendo o caso de se desconsiderar a regra disposta no art. 1º, § 7º, da Lei 9.455/1997, que possui a mesma disposição da norma declarada inconstitucional. Cabe esclarecer que, ao adotar essa posição, não se está a violar a Súmula Vinculante n.º 10, do STF, que assim dispõe: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. De fato, o entendimento adotado vai ao encontro daquele proferido pelo Plenário do STF, tornando-se desnecessário submeter tal questão ao Órgão Especial desta Corte, nos termos do art. 481, parágrafo único, do CPC: “Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”. Portanto, seguindo a orientação adotada pela Suprema Corte, deve-se utilizar, para a fixação do regime inicial de cumprimento de pena, o disposto no art. 33 c/c o art. 59, ambos do CP e as Súmulas 440 do STJ e 719 do STF. Confiram-se, a propósito, os mencionados verbetes sumulares: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.” (Súmula 440 do STJ) e “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.” (Súmula 719 do STF). Precedente citado: REsp 1.299.787-PR, Quinta Turma, DJe 3/2/2014. HC 286.925-RR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 13/5/2014.


Boletim IBRASPP

 

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Inimputável e Falta de Lugar – HC concedido – STJ

DIREITO PENAL. ILEGALIDADE NA MANUTENÇÃO DE INIMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.

É ilegal a manutenção da prisão de acusado que vem a receber medida de segurança de internação ao final do processo, ainda que se alegue ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. Com efeito, o inimputável não pode, em nenhuma hipótese, ser responsabilizado pela falta de manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança, por ser essa responsabilidade do Estado. Precedentes citados: HC 81.959-MG, Sexta Turma, DJ 25/2/2008; RHC 13.346-SP, Quinta Turma, DJ 3/2/2003; e HC 22.916-MG, Quinta Turma, DJ 18/11/2002. RHC 38.499-SP, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.


Ministério Público e casados atuando juntos, não causam nulidade, diz STJ.

STJ Atuação de cônjuges promotores no mesmo processo não caracteriza impedimento TJ/SC havia declarado a nulidade de um processo em que atuaram dois membros do MP casados. terça-feira, 8 de abril de 2014. O STJ deu provimento a REsp do MP/SC contra acórdão do TJ que havia declarado a nulidade de um processo, ex officio, em que atuaram dois membros do MP casados entre si. Para a 5ª turma, a atuação sucessiva de cônjuges promotores de Justiça no mesmo processo não caracteriza impedimento. O tribunal declarou a nulidade do feito porque a promotora que atuou na sessão de julgamento do Júri, e ofereceu contrarrazões à apelação, “é casada com o promotor que subscreveu a petição de contrarrazões ao recurso em sentido estrito manejado contra a decisão de pronúncia”. O MP sustentou que o acórdão negava vigência ao disposto nos arts. 252 e 258 do CPC, pois o impedimento previsto se aplica apenas aos casos em que o cônjuge tenha participado em função diversa do impedido, o que difere da situação dos autos, onde ambos os cônjuges atuaram na condição de promotores. Em seu voto, o ministro Moura Ribeiro, relator, observou que o disposto no art. 258 do CPC dispõe que “Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que lhes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes.” Neste sentido, o relator ainda afirmou que ao apreciar questão semelhante à dos presentes autos, o STF adotou o mesmo entendimento afirmando, “inclusive, que em se tratando da atuação de cônjuges promotores, o que se dá é apenas uma alteração de pessoas que compõem órgãos representantes do Ministério Público.” Foi determinado o prosseguimento do feito, com a análise do mérito da apelação manejada contra a decisão de pronúncia. Processo relacionado: REsp 1.413.946 Confira a íntegra do acórdão.